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O início do governo Lula, limites e possibilidades

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Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 14/02/2023, às 08h25   Penildon Silva Filho*


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O início do governo Lula experimenta de forma condensada as grandes potencialidades de reconstrução e transformação nacional, e deixa claro seu compromisso com os mais pobres e vulneráveis. Ao mesmo tempo, os limites e obstáculos à consolidação de uma democracia substantiva se apresentam, mesmo que se vislumbre uma dinâmica política nacional e internacional que é capaz de contribuir para uma concertação progressista e de enfrentamento dos grandes problemas da humanidade.

Esses problemas são a fome e o aumento das desigualdades advindos da exacerbação do neoliberalismo e do capitalismo, o colapso ambiental e climático que vem acelerando o ritmo dos desastres naturais e a vulnerabilidade das populações mais frágeis, a completa desregulamentação do capital financeiro internacional e seus paraísos fiscais que acobertam o crime organizado, o desafio da Saúde pública em escala planetária, as transformações do mundo do trabalho e o neofascismo e seus instrumentos políticos e midiáticos que ameaçam a civilização.

O governo Bolsonaro terminou em 30 de outubro de 2022, com uma abstenção completa do antigo presidente em gerir a máquina pública depois do segundo turno presidencial. Este se dedicou exclusivamente a montar uma estrutura golpista que se expressou com muita agudeza em 8 de janeiro de 2023, mas não se limitará a essa data. Esse é um aspecto preponderante da atual conjuntura que vai estar presente durante todo o mandato de Lula, o neofascismo que hoje é liderado por Bolsonaro tem base social militante, representatividade social em todas as classes sociais, uma parcela muito expressiva de setores religiosos, das forças armadas, dos meios de comunicação, do empresariado, mas também dos trabalhadores e dos setores desorganizados, e esse movimento tentará a todo momento desestabilizar o governo atual e derrubá-lo.

A estratégia fascista será desestabilizar as instituições, ocupar as redes sociais, formar militância sempre presente nas ruas, debilitar a economia por atos e ações políticas dentro e fora do parlamento, onde eles têm uma base forte também, para encontrar um momento para tomar o poder combinando ações institucionais, econômicas e de movimento social, sem respeitar as regras da Constituição.
O Governo Lula começou na prática antes da posse, com a aprovação da emenda constitucional do Bolsa Família, com a presença forte e decisiva na COP do Egito e uma ampla articulação política, institucional e social no Brasil. Um governo que se saiu de forma satisfatória antes e depois de 8 de janeiro e da emergência humanitária dos Yanomami, tomando medidas corretas na relação com os movimentos sociais progressistas e contra os movimentos golpistas e apresentando medidas adequadas para começar a reinstituir alguns direitos sociais básicos.

Trata-se de um governo de coalização amplo, e tinha que sê-lo, pois apenas com essa amplitude é possível derrotar o fascismo e ter governabilidade. Mas essa ampliação não tem impedido o governo de ter uma postura correta de enfrentamento ao golpismo neofascista e começar com firmeza um processo de desbolsonarização do Estado. Saudamos essas iniciativas, inclusive de enfrentar o golpismo dentro das Forças Armadas e de outros aparelhos de Estado. Apoiamos a continuidade dessa posição firme e precisamos aprofundá-la sempre que possível, substituindo quadros golpistas nos cargos de confiança e reformando sempre que possível instituições como as FFAA e as polícias; caso contrário o governo será derrotado.

A pauta econômica de Lula está correta e tem um perfil de caráter progressista e de esquerda. Essa pauta aponta para uma nova regra de responsabilidade fiscal, uma prioridade para a responsabilidade social com os mais pobres e vulneráveis acima da responsabilidade fiscal e faz uma crítica forte à ação do Banco Central que mantém uma política neoliberal de juros com a maior taxa de juros real do mundo. O único objetivo dessa política de juros e garantir lucros aos rentistas.

Lula está conseguindo ter um governo amplo sem se descaracterizar e, dentro da correlação de forças das classes e frações de classes sociais, tem suportado tentativas golpistas, com uma situação ainda de pouca mobilização popular e de destruição das políticas públicas. O presidente tem feito uma gestão exitosa, formidável para as condições objetivas postas. Os resultados do governo não se medem apenas pelas intenções iniciais ou um resultado ideal, mas pelos resultados alcançados dentro da correlação de forças existente, segundo uma avaliação marxista, e hoje a correlação de forças é mais desfavorável do que em 2003.

Por outro lado, há resistências fora e dentro da base do governo ao programa econômico desenvolvimentista e de transição socioecológica de Lula. Essa é uma segunda característica do próximo período: mesmo dentro do governo há setores que procuraram congelar ou sabotar as pautas de desenvolvimento econômico com geração de emprego e sustentabilidade ambiental, e a todo tempo esses setores procurarão condicionar o apoio ao governo Lula à uma imobilidade econômica e à manutenção da pauta neoliberal. Esse é duplo desafio, que se converte em enigma que se não for decifrado devorará um projeto transformador. De um lado há a ameaça neofascista e por outro a chantagem neoliberal. Mas há alternativa e saída para essa situação.

A saída vem sendo bem desenhada nesse início de governo com uma estratégia política clara, uma capacidade e habilidade política em criar alianças pontuais, outras mais de longo prazo, em cima de acertos programáticos e capacidade de mobilização da militância, movimentos sociais e opinião pública, especialmente a partir de uma agenda eminentemente social e ambiental. Quando o MEC decide aumentar o piso salarial nacional dos profissionais da Educação cria-se uma aliança com uma base social fortíssima na Educação; precisamos agora dar continuidade a essa mobilização com um amplo programa de Educação Integral e abrir o debate sobre o projeto de Educação do governo com os educadores e a sociedade.

Quando o governo tem uma ação rápida e incisiva contra os golpistas e demite o general comandante do exército, isso cria uma aliança com uma base social democrata e tem um efeito pedagógico muito positivo na sociedade e para dentro das próprias FFAA. Quando o governo reage com força e expulsa os garimpeiros ilegais da reserva Yanomami, dá-se um sinal claro de qual é o seu lado e projetos. São ações que tem materialidade na gestão e concretude na política. Não existe gestão sem política, e o governo Lula tem feito isso de forma muito competente nesse início.

Ganha papel importante já no primeiro mês a atuação internacional com a visita a Argentina, Portugal, Uruguai, e ao Egito antes da posse. Também com a recepção ao primeiro ministro da Alemanha reforça-se a agenda ambiental, e já há uma agenda para visita aos Estados Unidos e à China. A saída para o combate ao neoliberalismo e ao neofascismo, para a atração de investimentos, para a construção de uma aliança internacional para tratar da emergência climática e criar uma transição socioecológica com um novo clico de desenvolvimento econômico verde passa pelo protagonismo internacional que Lula soube fazer muito bem em seus dois primeiros mandatos, que foi seguido pelos governos de Dilma, mas que agora deve ser aprofundado.

As alianças internacionais são a chave parta romper isolamentos e prover saídas para os bloqueios internos e externos que estão se armando contra o terceiro mandato de Lula. O Brasil já se reinseriu na CELAC-Comunidade dos Países Latino Americanos e Caribenhos, afirmou que a prioridade será a volta da UNASUL-União dos Países da América do Sul e propôs uma moeda única na América do Sul e para os BRICS. Logo estará estreitando uma aliança com a China, que será o grande parceiro econômico, político e ambiental para uma aliança visando à criação de um mundo multipolar, que rompa com o unilateralismo estadunidense.

São complementares o projeto da Nova Rota da Seda na Ásia, incluindo Oriente Médio e a África com a China, e a UNASUL, a CELAC e a África com o Brasil. Apenas com a criação de uma base econômica forte, pujante, com inclusão social consistente e avanço científico, tecnológico e cultural rápido pela China e Brasil e suas regiões poderemos criar uma nova dinâmica que se sobreponha ao neoliberalismo, à hegemonia do capital financeiro e ao unilateralismo dos Estados Unidos. O Brasil já delineia esse projeto. Precisamos apoiá-lo e fortalecê-lo.

Por outro lado, as políticas públicas devem nesse terceiro mandato de Lula ser acompanhadas pelo envolvimento dos movimentos sociais, empoderando esses movimentos, junto a essas políticas e criando uma cultura política cidadã e participativa, que se contraponha à cultura neofascista da destruição, do negacionismo, da intolerância e da violência. Nesse terceiro mandato, além da melhoria dos indicadores sociais, coisa que os primeiros mandatos de Lula e Dilma já conseguiram, a prioridade deve ser a mudança cultural, a disputa de valores, da solidariedade, da participação, do apreço pela Ciência, pela Cultura, pela Educação e do combate a toda forma de preconceito e discriminação por um mundo mais diverso.

A alma humana se alimenta de valores, de símbolos, de conceitos, e quem defende a Democracia deve fazer essa disputa de hegemonia. São essenciais para isso a Educação Integral, as Universidades, as políticas culturais, o avanço da Ciência e da Cultura, o empoderamentos dos movimentos sociais progressistas. Novamente aqui notamos o necessário casamento da GESTÃO e da POLÍTICA, da competência nas políticas públicas com a capacidade de disputar valores e trazer a sociedade para uma compreensão de mundo verdadeiramente democrática, inclusiva, socialmente justa e ambientalmente sustentável.

*Doutor em educação e professor da UFBA

O texto não reflete, necessariamente, a opinião do BNews.

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