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A Eleição para Presidente: Fatos x “Narrativas” e Fake News

Imagem A Eleição para Presidente: Fatos x “Narrativas” e Fake News
Luiz Filgueiras é Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 25/10/2022, às 16h07   Luiz Filgueiras*


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Para a extrema-direita mundial, e sua expressão neofascista no Brasil (o bolsonarismo), os fatos em si mesmo não existem; existem apenas “narrativas” conforme o gosto do freguês. Do ponto de vista político, a disseminação desse ponto de vista, e do comportamento nele baseado, é uma tragédia para a discussão e o debate públicos: não mais se confrontam análises, interpretações e explicações distintas sobre fatos que todos reconhecem (consensualmente) existirem; o confronto passa a se dar em torno da existência ou não dos fatos em si mesmos, o que existe e o que não existe, o que é verdadeiro e o que é falso. Com isso, abrem-se as portas para todo tipo de afirmações sem qualquer tipo de evidência, discursos fraudulentos, falsidades e mentiras: instala-se o reino das chamadas fakes news.

Um fato qualquer é um acontecimento que, independentemente de nós, ocorreu; é algo objetivo, exterior a nós. No entanto, o fato em si não é autoexplicativo, não fala por si mesmo; por isso, a sua observação, entendimento e explicação sempre dependerá do sujeito (da pessoa) que o analisará. Os valores e crenças desse sujeito, sua formação e visão de mundo, influenciarão, sem dúvida, em sua observação e análise, mas sempre tendo por objeto e referência o fato existente, reconhecido. Portanto, o resultado final do conhecimento sempre decorrerá da relação entre o sujeito e o fato (realmente existente) que é objeto de observação e análise. A explicação, portanto, não é uma “narrativa” e esta não tem a capacidade de substituir o fato.

Por exemplo: um homem morreu, está morto. Isso é um fato, que pode ser comprovado e reconhecido por todos. Não há como negar esse estado, afirmando-se que ele está vivo. Mas ele morreu de morte natural, acidental, suicidou-se ou foi assassinado? A resposta a essa questão necessitará de uma investigação, que dependerá da capacidade do investigador (em argumentar com base em provas e evidências) e do uso de instrumentos que estiverem a seu alcance. Eventualmente, a partir do trabalho de dois ou mais investigadores, pode-se ter conclusões distintas. Mas quaisquer que sejam elas, todas estarão referenciadas no fato e na evidência de que um homem morreu, está morto! Nenhuma delas poderá ignorar isso! Não há como contornar esse fato.

Mas o que significa a palavra “narrativa”? A resposta pode ser conferida em distintos dicionários: é a ação, o efeito ou o processo de narrar, de relatar, de expor um fato, contar um acontecimento ou uma situação (real ou imaginária!), por meio de palavras. Uma situação real ou imaginária! Observe-se, portanto, que uma narrativa não precisa ter qualquer compromisso com os fatos, com a realidade e com a verdade; não é uma explicação, mas um conto, um relato sobre algo existente ou inventado (imaginado).

Por isso, o conceito de narrativa utilizado e propagado pela extrema-direita não supõe a existência prévia de um acontecimento real, a partir do qual haverá uma explicação; nessa perspectiva, a narrativa não precisa partir de qualquer tipo de fato ou realidade objetiva, no limite pode ser mesmo uma mera construção da imaginação, um delírio, de uma mente (perversa). E isso é assim por mais absurda que a narrativa pareça, ou seja, mesmo que ela não tenha qualquer relação com o que ocorreu ou está ocorrendo no mundo, mesmo que não tenha qualquer compromisso com a verdade. Desse modo, as “narrativas” bolsonaristas são os principais veículos de disseminação de suas fake news.

Os exemplos, velhos e novos, disseminados pelo bolsonarismo e que chegam no limite da alucinação são inúmeros: o Haddad distribuiu o “kit gay” nas escolas de São Paulo e difundiu a chamada “mamadeira de piroca”; crianças entre 3 e 4 anos tiveram seus dentes arrancados para praticarem sexo oral sem morder (Ex-Ministra Damares); se Lula ganhar a eleição, o incesto vai ser legalizado; os bandidos e criminosos votam em Lula; Lula vai fechar igrejas evangélicas e proibir a prática religiosa cristã. Vale qualquer coisa, sem qualquer tipo de evidência ou prova. É uma prática criminosa que, infelizmente, principalmente no período eleitoral, a justiça tem tido enorme dificuldade de coibir. Esse uso das novas tecnologias, pelo bolsonarismo, para disseminar mentiras de todo tipo foi constatado desde as eleições de 2018. Na atual eleição, essa prática cresceu de forma absurda, não respeitando qualquer limite ético ou moral: pesquisadores que acompanham essa loucura identificaram, em média, quinhentas (500) fake news por dia!

Na verdade, para a extrema-direita, a narrativa substitui o fato, ela é o próprio fato (criada por mentes doentias); confrontam-se “narrativas”, independente dos fatos. Desse modo, uma narrativa qualquer se equivale a todas as demais ou vale tanto quanto outra qualquer, porque o que existe e é relevante são as versões acerca dos fatos (com clara distorção deles, a ponto de ficarem irreconhecíveis) ou simplesmente inventadas a partir do nada, cuja validade e legitimidade dependerá da capacidade de quem as construiu em divulgar e convencer os receptores da informação. E aqui entra o papel das redes sociais na disseminação das “versões ou narrativas”, das fake news.

A forma de comunicação nas redes sociais, baseada em mensagens ligeiras e “memes”, favorecem a difusão das “narrativas” e das fake news, que são facilmente repetidas e difundidas, inclusive com o uso de robôs. Essas redes não são espaços de discussão e reflexão, são arenas de disputa de “narrativas” que tem por objetivo o engajamento de seus participantes (inclusive com o objetivo de ganhar dinheiro). E, aparentemente (só aparentemente) nivelam seus participantes, que se sentem empoderados e atuantes, com legitimidade de inventar e difundir qualquer coisa – por que agora, supostamente, todos teriam, em condições de igualdade, acesso à informação e ao conhecimento, disponíveis para quem quiser. Tudo é uma questão de opinião. A afirmação de um adolescente de 15 anos, sobre o funcionando do universo por exemplo, vale tanto quanto a explicação dada por um físico teórico que ganhou o Prêmio Nobel.

A situação atual é tão grotesca que é necessário ficar se afirmando coisas óbvias, do tipo: a terra é redonda e não plana, o homem aterrissou na lua, as vacinas são uma conquista da humanidade, o holocausto judeu (6 milhões de mortos) existiu, o nazifascismo é um fenômeno que se localiza na extrema-direita do espectro político, a escravidão no Brasil durou quase quatro séculos, o golpe de 1964 implantou uma ditadura no Brasil que durou vinte anos etc.

Esse é um padrão e uma realidade que veio para ficar, independente de circunstâncias eleitorais, está associado às novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e à forma assumida pelo desenvolvimento do capitalismo neoliberal financeirizado nos últimos quarenta anos. O desafio posto - para ação política, os intelectuais, os cientistas e a democracia - é de como enfrentar essa situação e recuperar a possibilidade do debate público aberto e transparente. Um bom ponto de partida é reconhecer que a solução é, ao mesmo tempo, política e econômica, que pode ser sintetizada na necessidade imperiosa de se confrontar as grandes corporações da Economia do Conhecimento, localizadas no Vale do Silício nos EUA. Articuladas com o capital financeiro, são sócias hoje no ataque à democracia e na difusão do fascismo pelo mundo afora.

Por fim, uma sugestão de leitura sobre o tema: o livro “Os Engenheiros do Caos” de Giuliano Da Empoli, publicado no Brasil em 2019 pela editora Vestígio.

*Luiz Filgueiras - Professor Titular da Faculdade de Economia da UFBA. Pesquisador na área de Economia Política, Desenvolvimento e Economia brasileira.

**As opiniões contidas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do portal

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