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O Carnaval da Bahia a partir do ano que nasci

Publicado em 19/01/2015, às 19h32   Fernando Araújo Oliveira



Em 1942, o poeta soteropolitano, jornalista e editor de revistas ilustradas, Áureo Contreiras escreveu uma crônica para o jornal A Tarde intitulada "O valor dos cordões e das batucadas no carnaval". Em sua crônica, reeditada no ano seguinte no Diário de Notícias, ele argumentava que as instituições carnavalescas populares dos bairros mais pobres, incluindo as batucadas percussivas afro-baianas, eram "os fatores reais dos folguedos", e a parte mais autêntica "da alma carnavalesca". Com este argumento, Contreiras apelava para o discurso nacionalista, em voga na década de 1940, de que o Brasil era uma mistura de índio, africano e português, "as três raças tristes", cujos "gritos e cânticos" enchiam as ruas durante o carnaval. Os cordões e batucadas eram fruto das alegrias e das dificuldades e amarguras do cotidiano popular. O "verdadeiro" carnaval, dizia Contreiras, era o praticado pelas classes trabalhadoras afro-baianas e por trabalhadores pobres de Salvador. Destacava também o pandeiro, a cuíca e o reco-reco e "todos os instrumentos bárbaros evocativos do passado nas senzalas e nos 'terreiros'", como vínculos com um passado baiano que era, ao mesmo tempo, central para a formação cultural do Brasil, assim como para o presente cultural da Bahia.
O argumento de Contreiras revela um protagonismo afro-baiano a empurrar a "cultura negra" – as batucadas em particular – para a vanguarda do carnaval baiano. Emergente na década de 1930, as batucadas institucionalizaram e ritualizaram as práticas musicais e sociabilidades da classe trabalhadora afro-baiana no carnaval da Bahia. Afro-baianos souberam aproveitar o poder transformador desta festa para pressionar e obter maior relevância cultural e simbólica no carnaval da cidade, e além dele. A natureza lúdica do carnaval permite a indivíduos ou grupos transcender, expandir ou engrandecer a si mesmos e à sua condição social em espaços públicos. Isto não quer dizer que o carnaval represente um momento igualitário, livre do seu contexto histórico-estrutural. Ao contrário, o carnaval é um espaço disputado em que a performance e o ritual contribuem para as negociações sobre o significado social dos modos que podem ou não influenciar a organização social durante o resto do ano. 
O artigo de Contreiras refletia e contribuía para uma reavaliação, pela classe dominante, do lugar da cultura afro-baiana no carnaval, o que era parte de uma reavaliação mais ampla e relativamente de maior alcance da cultura afro-baiana e suas contribuições para a baianidade depois de 1930. No contexto do carnaval, esta reavaliação foi amplamente realizada nos artigos e editoriais escritos por membros da influente "Associação de Cronistas do Carnaval", da qual Contreiras fazia parte. Os cronistas eram os principais comentaristas dos acontecimentos dos três dias de festa e desempenhavam um papel central na reelaboração da organização e dos significados do carnaval baiano desde o seu início até meados do século XX, do modo como as pessoas e grupos participavam (ou não participavam), e como os soteropolitanos pensavam as festividades em relação a eles mesmos e ao Brasil. A narrativa historiográfica do carnaval baiano, no entanto, quase não reconhece o período entre 1930 e 1950.
A história convencional normalmente começa com o surgimento do "carnaval oficial" da década de 1880, majoritariamente branco, com seus desfiles grandiosos, ao lado de um "carnaval popular" composto por uma grande variedade de associações menores, incluindo as organizadas pelos afro-baianos. A partir desse ponto, a narrativa salta para 1949, ano de fundação do afoxé Filhos de Gandhy, e, logo em seguida, para a criação do trio elétrico em 1951. Certamente, o Filhos de Gandhy, hoje muito maior, é uma das imagens visuais mais impressionantes do carnaval baiano. O trio elétrico, inicialmente um trio de músicos tocando música amplificada em cima de uma caminhonete Ford, que vem sendo atualizado desde 1951, faz o carnaval contemporâneo, com suas atrações comerciais. No entanto, as mudanças no carnaval baiano entre 1930 e 1950 foram significativas e, avaliar o crescimento das batucadas e sua inclusão pela cultura dominante permite uma melhor compreensão da trajetória histórica da identidade regional e da política cultural baiana entre o final do século XIX e segunda metade do século XX.
O carnaval baiano, desde os seus primórdios na década de 1880, tinha se centrado no desfile oficial organizado pela elite da cidade, cujo eixo central era os carros alegóricos dos três grandes clubes – Cruz Vermelha, Inocentes em Progresso e Fantoches da Euterpe. Depois de 1930, no entanto, os clubes de elite caíram em um prolongado período de dificuldades financeiras, que espelhava o relativo declínio da própria situação econômica de Salvador, um período que durou até a década de 1950. Consequentemente, o "carnaval popular" e os pequenos clubes preencheram o vácuo, forçando um reequilíbrio na formulação dos significados do carnaval da Bahia. Do final da década de 1930 aos últimos anos da de 1950, as associações carnavalescas afro-baianas, em especial as batucadas e seu preferido gênero musical, o samba, aumentaram sua presença pública durante os três dias de celebrações, tornando-se características marcantes desse mais famoso carnaval de rua. As batucadas tocavam sambas criados pela indústria musical, mas também escreviam e tocavam suas próprias letras e músicas e, portanto, representavam uma manifestação pública de uma espécie crua, não comercializada de afro-baianidade. A intensa década de 1940 foi realmente a "Era das Batucadas".
Depois de 1950, os clubes de elite recuperaram sua situação financeira, mas não recuperariam seu domínio quase total sobre a forma, o conteúdo ou o significado do carnaval. Por mais de uma década a balança do carnaval de Salvador favoreceu as práticas festivas populares da classe trabalhadora afro-baiana como o indicador simbólico central da identidade do carnaval de Salvador. A importância do samba e das batucadas para o carnaval tinha estabelecido, no discurso dominante, uma relação permanente e poderosa entre a afro-baianidade e o carnaval baiano.
Essas mudanças foram reforçadas por outros fatores específicos do período, tais como a reanimação dos afoxés no final da década de 1940, do que é exemplo o Filhos de Gandhy. Além disso, o carnaval em Salvador ficou mais popular na medida em que o número de clubes menores, incluindo as batucadas, aumentou e se espalhou nos bairros populares da cidade. Por outro lado, a partir da década de 1930, soteropolitanos comuns espalharam as festividades do carnaval popular além de sua tradicional demarcação, invadindo o espaço ritual das outras grandes festas populares, ampliando a inclusão da cultura afro-baiana, como o samba e as batucadas, dentro da prática ritual festiva além dos limites espaciais e temporais do calendário do carnaval. Sobretudo, a partir de um ponto de vista performativo, o desaparecimento dos clubes de elite e o aumento dos pequenos clubes, entre as décadas de 1930 e 1940, deslocaram a ênfase do discurso oficial do carnaval dos três clubes para um evento dominado, em parte  pela participação ativa dos populares, e associado às contribuições dos afro-baianos e da cultura afro-baiana.
Fernando Araújo é Filósofo e pensador

Classificação Indicativa: Livre

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