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O Coronavírus e a pandemia do lucro das empresas no setor de callcenter

Imagem O Coronavírus e a pandemia do lucro das empresas no setor de callcenter
Bnews - Divulgação

Publicado em 14/04/2020, às 15h03   Pedro Albergaria*


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A pandemia do Coronavírus que atualmente apavora o planeta já é responsável por milhares de mortes em todo o globo, inclusive no Brasil, e a perspectiva, segundo especialistas, é que a onda mais forte dessa terrível enfermidade ainda esteja por atingir o nosso país. Por conta disso, muitos dos mais diversos ramos de atividades econômicas adotaram medidas profundas e absolutamente necessárias em sua forma de organização e produção a fim de reduzir, preventivamente, os impactos no sistema de saúde nacional e, principalmente, de proteger a vida de seus empregados, familiares e da população em geral, evitando um temido colapso do já precário sistema de saúde brasileiro. No entanto, embora toda a mobilização nacional entorno da causa, as empresas de callcenter se mostram indiferentes aos seríssimos riscos do Covid-19. Assim, as teleoperadoras e teleoperadores brasileiros – um dos grupos, historicamente, mais sensíveis à sede de lucro das grandes empresas – parecem ter sido esquecidos e deixados ao relento mais uma vez.

Antes de tudo, é importante lembrar que, há muito, essa classe de trabalhadores tem, reiteradamente, seus direitos laborais desrespeitados pelos patrões, conforme constatam os inúmeros autos de infração do extinto Ministério do Trabalho relacionados ao descumprimento das prescrições previstas no Anexo II da Norma Regulamentadora nº 17, que trata exclusivamente de saúde e segurança do trabalho para o callcenter. Entre 2008 e 2016, por exemplo, a Fiscalização do Trabalho lavrou 3.974 desses documentos1. Da mesma forma, vale destacar que diversas são as pesquisas e os relatos que dão conta de um padrão predatório de gestão do trabalho no Brasil, marcado pela ocultação (não reconhecimento do adoecimento laboral ou dos seus riscos potenciais), individualização (responsabilização única ao trabalhador por sua própria saúde e segurança) e confrontação direta (combate à legislação trabalhista ou a qualquer outra tentativa de limitação do arbítrio explorador do empresário)2. E a atual postura adotada pelos callcenters reforça essa prática. Essas empresas se mostram indiferentes a qualquer limite imposto pelo trabalho humano, fato este que se dá em função da insuperável contradição entre a natureza do trabalho humano, que possui limites fáticos, fisiológicos, e a natureza social do capital, que desconsidera qualquer limite para sua reprodução.

Por conta disso, a atividade laboral dos atendentes de telemarketing é marcada como causa de adoecimento sérios, que podem mesmo vir a desestruturar a capacidade de trabalho e/ou de convívio social das/dos trabalhadoras/es como nos casos manifestados nas ocorrências de lesões por esforço repetitivo, tendinites, síndrome do túnel do carpo, depressão aguda, síndrome do pânico, infecção urinária, obesidade, hipertensão arterial, disfonias, nódulos nas cordas vocais, dentre outras formas próximas de doenças4.Tudo isso em decorrência das condições precárias de trabalho; pelo controle constante e excessivo por parte dos empregadores; pela obrigação do cumprimento de metas impossíveis sob intensa pressão psicológica; pelos sucessivos casos de assédio moral; pela imposição de um ritmo de trabalho alucinante; e pelas condições comumente insalubres do ambiente de trabalho5.

Especialmente no que concerne ao ambiente de trabalho – e, aqui, concentra-se a importância de discutir o tema no contexto da epidemia do Coronavírus – este é um espaço que concentra centenas e até milhares de teleoperadoras trabalhando simultaneamente em postos de atendimento colados uns aos outros, onde a proximidade e a interação pessoal são inevitáveis.  O ambiente é confinado, dotado de ar condicionado centralizado (quase nunca limpo), baixas temperaturas e baixa umidade relativa do ar6. Em outras palavras, um local mais do que propício ao contágio de doenças infecciosas.

Ademais, vale ressaltar, que os instrumentos de trabalho do callcenter, como computadores e headsets, são compartilhados e quase nunca higienizados da maneira correta.

Por sua vez, a alimentação é precária e de má qualidade: não há tempo para uma refeição adequada, pois menos tempo de trabalho é igual a menos produtividade, que, frequentemente, geram advertências formais, redução de salários e até demissão. Junto a isso, intervalos para saídas dos postos de trabalho e satisfação de necessidades fisiológicas são restritos7 e rigidamente controlados.

Portanto, não é de se espantar, por exemplo, que, em estudo realizado no Distrito Federal, 42,9% dos trabalhadores do callcenter sofressem de doenças ocupacionais contra 14,9% de outros setores; que 73,5% dos empregados das telecomunicações tenham apresentado atestado médico frente a 18,9% dos trabalhadores dos demais ramos de atividade; ou que 93% do setor de telefonia tenha demonstrado percepção em relação ao aumento do ritmo e intensidade de trabalho em contraste a 57,5% dos trabalhadores de outros setores da economia8.

Além desse mórbido contexto, mesmo diante do gravíssimo quadro de risco de vida trazido pela nova pandemia, são inúmeros os relatos de teleoperadores que reclamam da falta de álcool-gel nos postos de trabalho, da impossibilidade de higienizar instrumentos compartilhados e da superlotação do ambiente em que trabalham.

Assim sendo, considerando o histórico de adoecimento, porque não dizer, deliberado, intencional e estrutural do setor, o callcenter mostra, mais uma vez, a sua face doentia.   Nessas condições, por óbvio, tão abissal quanto a gravidade da epidemia do Corona vírus, ora enfrentada por toda a humanidade, é a chance de contaminação em massa entre os teleoperadores de callcenter. Tudo leva a crer que, além de ter de sobreviver todos os dias à sede predatória de lucro dos patrões, as trabalhadoras e trabalhadores de telemarketing agora terão que lutar também uma guerra direta por suas vidas contra outro vírus igualmente funesto.

Referências Bibliográficas

1REIS, Odete C. P. A atividade de teleatendimento dez anos após a regulamentação do ministério do trabalho para o setor (anexo II da norma regulamentadora 17). In: FILGUEIRAS, V. A. (org.). Saúde e Segurança do trabalho no Brasil. Brasília: Gráfica Movimento, 2017. Disponível em <http://abet-trabalho.org.br/saude-e-seguranca-do-trabalho-no-brasil-org-vitor-araujo-filgueiras/>. Acesso em 20 de mar. 2020.p. 367.
2FILGUEIRAS, Vitor A. Saúde e Segurança do Trabalho no Brasil. In: FILGUEIRAS, V.A.(org). Saúde e Segurança do Trabalho no Brasil. Brasília: Gráfica Movimento, 2017. Disponível em <http://abet-trabalho.org.br/saude-e-seguranca-do-trabalho-no-brasil-org-vitor-araujo-filgueiras/>. Acesso em 20 de mar. 2020. p. 21.
4SOUZA, Ilan F.; BARROS, Lidiane A.; FILGUEIRAS, Vitor A. Saúde e Segurança do Trabalho Curso Prático. Brasília: ESMPU, 2017. ISBN 978-85-9527-020-6. Disponível em<http://abet-trabalho.org.br/saude-e-seguranca-do-trabalho-curso-pratico-orgs-ilan-fonseca-de-souza-lidiane-de-araujo-barros-vitor-araujo-filgueiras/>. Acesso em: 20 de mar. 2020. p. 117.
5REIS, Odete C. P. A atividade de teleatendimento dez anos após a regulamentação do ministério do trabalho para o setor (anexo II da norma regulamentadora 17). In: FILGUEIRAS, V. A. (org.). Saúde e Segurança do trabalho no Brasil. Brasília: Gráfica Movimento, 2017. Disponível em <http://abet-trabalho.org.br/saude-e-seguranca-do-trabalho-no-brasil-org-vitor-araujo-filgueiras/>. Acesso em 20 de mar. 2020.p. 361.
6SILVA, Airton M. A regulamentação das condições de trabalho no setor de teleatendimento no Brasil: necessidades e desafios. 2004. 90 f. Dissertação (Mestrado) - Saúde Pública. Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 2004. Disponível em < http://www.fundacentro.gov.br/biblioteca/biblioteca-digital/acervodigital/detalhe/2010/8/a-regulamentacao-das-condicoes-de-trabalho-no-setor-de-teleatendimento-no-brasil-necessidade>. Acesso em: 20 mar. 2020. p. 28.
7SOUZA, Ilan; BARROS, Lidiane; FILGUEIRAS, Vitor. Saúde e Segurança do Trabalho Curso Prático. Brasília: ESMPU, 2017. ISBN 978-85-9527-020-6. Disponível em <http://abet-trabalho.org.br/saude-e-seguranca-do-trabalho-curso-pratico-orgs-ilan-fonseca-de-souza-lidiane-de-araujo-barros-vitor-araujo-filgueiras/>. Acesso em: 20 de mar. 2020. p. 124.
8DUTRA, Renata Q..Do outro lado da linha: poder judiciário, regulação e adoecimento dos trabalhadores em Call Centers. 2014. 294 f. Dissertação (Mestrado) – Direito. Universidade de Brasília (UnB), Brasília, 2014. Disponível em < https://repositorio.unb.br/handle/10482/15608>. Acesso em 17/07/2019. p. 114.

*Pedro Albergaria é pesquisador do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Universidade Federal da Bahia (Ufba). Graduando em Direito pela Faculdade de Economia da Ufba.

Classificação Indicativa: Livre

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