Economia & Mercado

A pauperização recente da sociedade brasileira

Imagem A pauperização recente da sociedade brasileira
Bnews - Divulgação

Publicado em 04/09/2018, às 23h02   Uallace Moreira



O período do Regime Militar no Brasil (1964-1985) foi marcado por uma média de crescimento econômico considerável de 6,4%, sendo que na fase conhecida como “milagre econômico” a taxa média de crescimento foi de 11,2%. Esse elevado crescimento econômico estava associado a uma forte expansão da indústria brasileira, com uma média de crescimento de 6,4% (1964-1985) e na fase do “milagre” uma taxa média de crescimento de 13,3%.

Muitos defensores do Regime Militar usam esses dados como argumento para exaltar essa fase histórica do Brasil, inclusive com muito saudosismo. Entretanto, é essencial levarmos em consideração algumas outras características que marcaram os Governos Militares, tais como a supressão dos direitos civis, a repressão política, assassinatos de opositores ao regime e o aprofundamento da desigualdade social no Brasil. Em relação a esta última característica, um dos principais instrumentos usados pelo Governo Militar foi a política salarial através da Circular nº 10, a qual basicamente penalizou os salários reais em favor dos lucros, promovendo um efeito distributivo negativo para os salários. Dois economistas tentaram legitimar essa política e a desigualdade social no Brasil: Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen. Ambos eram porta-vozes do governo militar e defendiam a política salarial adotada, argumentando que ela correspondeu à necessidade de conter o processo inflacionário e aumentar a taxa de poupança, além de afirmarem que altas taxas de crescimento econômico seriam incompatíveis com o distributivismo.

O resultado dessa política se materializou nos indicadores sociais do Brasil durante esse período, pois o Índice de Gini - instrumento para medir o grau de concentração de renda ou uma medida de desigualdade - em 1960 era de 0,497 e em 1985 aumentou para 0,597. Além do mais, de acordo com o IBGE, o somatório da proporção de pessoas pobres e extremamente pobres no Brasil era de 57,7% em 1976 e salta para 69,3% em 1983. 

Vejam que o crescimento da desigualdade social no Brasil durante esse período não foi resultado de um período de crise econômica prolongada, mas sim em uma das fases de maior crescimento econômico do país. Isso deixa em evidência que a concentração de renda e a desigualdade social no Brasil foram resultados de uma política econômica pensada pelas nossas elites no poder, fato este que fica evidenciado pelo apoio da elite empresarial brasileira ao Regime Militar.

Com o fim do Regime Militar e o processo de redemocratização, um dos acontecimentos mais relevantes da nossa história é a Constituição Federal de 1988, considerada a Constituição Cidadã, a qual através da sua concepção de universalidade, contribuiu para que o Governo Federal passasse a direcionar mais recursos para setores essenciais da sociedade - tais como saúde, educação, previdência, etc. – cujo objetivo era minimizar a desigualdade social no país. No período mais recente, além dos direitos garantidos na CF de 1988, a experiência brasileira mostrou que o crescimento econômico pode ser acompanhado de uma maior distribuição de renda. Entre 2002 e 2014, embora o país não tenha passado por reformas estruturais profundas, as políticas sociais, a política de valorização real do salário mínimo, as políticas de estímulo da demanda agregada como a elevação do investimento público com as grandes obras de infra-estrutura, propiciaram um cenário econômico marcado por um maior dinamismo e taxa de desemprego mais baixa. Essas variáveis corroboraram para uma expressiva redução da proporção de pessoas pobres e extremamente pobres: o somatório da proporção de pessoas pobres e extremamente pobres no Brasil sai de 60,9% em 1988 para 47,3% em 2002. Com o aumento de recursos direcionados para as áreas sociais e o crescimento econômico entre 2002 e 2014, o número de pessoas pobres e extremamente pobres cai para 19,9% em 2014, uma queda substancial.

Esse resultado do período recente deixa em evidência que é possível termos crescimento econômico com maior distribuição de renda, refutando assim todos os argumentos de que no Brasil é necessário promover uma maior concentração de renda nas mãos dos ricos para estimular o volume de poupança. A fase do Regime Militar deixou em evidência que essa lógica teve como resultado o crescimento da pobreza. 

Após o considerável avanço com a redução da pobreza no Brasil entre 2002 e 2014, estamos vivenciando um período de grandes retrocessos, o maior deles é o crescimento da pobreza. Assim como no período do Regime Militar, é importante que tenhamos clareza que o crescimento da pobreza e da desigualdade social no país com o Governo Temer não é resultado apenas da crise econômica, mas de políticas públicas pensadas para gerar esse cenário. A principal política pública que tem promovido o crescimento da pauperização no Brasil durante esse curto Governo Temer é a PEC dos Gastos, a qual congelou os gastos correntes e o investimento, mas manteve o pagamento dos juros da dívida pública para atender aos interesses dos detentores de títulos da dívida pública.  

O resultado do somatório da crise econômica e da PEC dos gastos é o retrocesso em vários setores essenciais para a sociedade, como na saúde, na educação, indicadores sociais, moradores de rua, etc. Eis alguns indicadores da gravidade da crise social no Brasil com o Governo Temer: a) depois de mais de uma década com quedas consecutivas, a taxa de mortalidade na infância (proporção de óbitos de menores de cinco anos para cada mil nascidos vivos) subiu 11% em 2016, em comparação com 2015; b) Em 10 meses de governo, Temer cortou quase um milhão de famílias do Bolsa Família, que recebiam, em média, R$ 177,71 por mês. Em abril de 2018, mais 312 mil famílias perderam o benefício; entre junho e julho de 2017, mais 543 mil foram cortadas do programa, totalizando 935 mil famílias desprotegidas contra a fome e condenadas à miséria e à pobreza. No orçamento público do Governo Federal de 2018, o Fundo Nacional de Assistência Social, que apoia serviços e programas de assistência social, teve perdas calculadas em 97%; em saneamento básico, a redução em relação ao ano passado é de 33%; na obtenção de imóveis para Reforma Agrária e na promoção da educação no campo, a redução chega a 86%. O resultado dessa política de cortes que atingem a sociedade é que a extrema pobreza voltou aos níveis de 12 anos atrás, pois em 2017 a quantidade de pessoas nessa condição saltou para 11,8 milhões de pessoas, sendo que em 2014 esse número tinha caído para 5,1 milhões de pessoas.

Muitos outros indicadores podem ser apresentados para constatar a grave crise social que o Brasil atravessa hoje. O mais preocupante desse cenário é que no período do Regime Militar quando se tomou a decisão de implementar políticas públicas para concentrar renda, os direitos civis estavam suprimidos, limitando a capacidade de reação da sociedade. Hoje, durante o Governo Temer, as políticas públicas implementadas para promover a desigualdade social estão acontecendo em um regime democrático, em que teoricamente a sociedade pode se manifestar e não aceitar essas medidas, mas o que se observa é uma grande parcela da sociedade na condição de passividade e resignação.

* Uallace Moreira - Pesquisador do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Faculdade de Economia da UFBA. é Doutor em Desenvolvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/UNICAMP).  Professor de Economia da Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (FE/UFBA) e Pesquisador Visitante do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

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