Educação

Nikolai Vavilov, a Ciência e a busca da verdade

Arquivo pessoal
Bnews - Divulgação Arquivo pessoal

Publicado em 07/08/2021, às 12h15   Penildon Silva Filho


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Nikolai Vavilov foi um personagem da Ciência muito importante para o desenvolvimento da Genética e da agricultura no mundo, mas sua história pessoal, marcada pela perseguição política e assassinato por motivos ideológicos, serve de aprendizado sobre a necessidade da Democracia e do livre pensamento para a Sociedade, as Ciências e para o cuidado que devemos ter com regimes obscurantistas ou negacionistas. A Ciência sempre sofreu em mãos de regimes autoritários, por não estar isolada da Sociedade; e assim como a instituição que mais a acolheu, a Universidade, deve ter um papel e uma ação de proteção da Democracia, das liberdades e do avanço dos direitos sociais, a Ciência viceja em um ambiente de liberdade, de compromisso social, de cooperação e de tolerância. 

Vavilov nasceu em Moscou em 13 de novembro (calendário gregoriano) de 1887 e foi filho de Aleksandra Mikhailovna e Ivan Ilich Vavilov. Apesar de sua família ser de comerciantes, a escolha de Vavilov e do seu irmão foi pela Ciência e pela pesquisa de ponta. Seu irmão foi o físico Sergei Ivanovich Vavilov. A vivência de uma infância em meio às dificuldades de alimentação na Rússia no século XIX, assolada por sucessivas crises de fome, e pelo fato de sua família ter vivido em uma vila faminta e muito pobre, com permanente racionamento de alimentos aos seus habitantes, levou Vavilov a estudar e pesquisar uma solução para essa situação, através da Ciência da Genética aplicada à agricultura, buscando aumentar a produtividade das lavouras. Um perfeito casamento de rigor científico e pesquisa incansável com um compromisso social e uma generosidade com toda a espécie humana. Tudo isso associado à uma atuação de colaboração internacional e à busca da verdade científica que devem nortear a comunidade acadêmica.

Vavilov se formou no Instituto Agrícola de Moscou em 1910 e nos dois anos seguintes trabalhou para o departamento de botânica aplicada e no departamento de micologia e fitopatologia. Mas já a partir de 1913, o jovem pesquisador já viajava pela Europa estudando a imunidade das plantas e a sua variabilidade com vistas a identificar sua origem e trajetória evolutiva. Manteve uma colaboração com o biólogo britânico William Bateson, contribuindo para o desenvolvimento da genética, que foi inaugurada pelo frade agostiniano Gregor Johann Mendel, sendo este esquecido no final do século XIX e redescoberto em XX por Hugo de Vries, Carl Correns e Erich von Tschermak. Vavilov foi professor na faculdade de Agronomia da Universidade de Saratov, e entre 1924 a 1935 foi diretor da Academia Lenin de Ciências Agrícolas, em Leningrado. 

Com uma atuação dentro e fora da recém instituída União Soviética, ele se aproximou da fitopatologista canadense Margaret Newton para estudar a doença do trigo, e em 1930 ele tentou contratá-la para trabalhar no instituto em Leningrado e a convidou a seguir com ele em expedições ao redor do mundo para coletar sementes do máximo de culturas possíveis, estudar onde a biodiversidade mais se expressava e identificar a evolução das espécies agrícolas com o objetivo de manipulá-las para conseguir ampliar a produção agrícola. Margaret Newton não pode aceitar o convite, mas mesmo assim passou três meses no instituto e ajudou a formar 50 alunos em sua área de pesquisa. Vavilov foi ainda membro do Comitê Executivo Científico da União Soviética, presidente da Sociedade Geográfica Russa e recebeu do governo o Prêmio Lenin.

Vavilov desenvolveu a teoria sobre os centros de origem de plantas cultivadas, a partir das muitas expedições botânicas, quando coletou sementes de vários lugares do mundo. Como resultado, em Leningrado criou a maior coleção do mundo de sementes, coleção depois que foi desprezada pelo regime stalinista e que os nazistas tinham o objetivo de capturar durante o cerco àquela cidade de 8 de setembro de 1941 a 27 de janeiro de 1944. Os cientistas ligados a Vavilov permaneceram no centro de pesquisas durante todo o cerco e muitos morreram de fome defendendo as pesquisas e a coleção.

Nesse esforço científico, a pesquisa de Vavilov alcançou lavouras na Europa, na África, na Ásia e na América e reuniu milhares de espécies de semestres e toneladas de amostras, permitindo o desenvolvimento de uma teoria com base na imunidade das plantas para identificar como as plantas e seus patógenos evoluíram, segundo a teoria da Evolução de Darwin e as descobertas do trabalho de Mendel, a partir da seleção natural das pressões ambientais. Seu trabalho levou a teorias sobre a diversidade genética das lavouras e sua relação com a imunidade a doenças. 

Sua pesquisa caminhava solidamente para alcançar seu sonho de jovem de contribuir para erradicar a fome, tendo a Ciência como melhor instrumento para isso, mas ele passou a sofrer uma perseguição do regime totalitário liderado por Josef Stalin. Numa situação de cerco internacional contra a União Soviética, que havia sofrido uma intervenção estrangeira depois de sua revolução, e com enormes pressões internas e externas das potências ocidentais e dos nazistas, o regime político se fechou e concentrou poder. Nessas circunstâncias, um desafeto de Vavilov, Trofim Lysenko, que antes havia sido apoiado e estimulado pelo próprio Vavilov, percebeu que poderia se aproximar de Stalin e conseguir um lugar de proeminência política e acadêmica, e ao mesmo tempo atacando seu antigo professor que o apoiou. Na época, Lysenko não era um bom cientista da área, mas Vavilov o apoiou mesmo assim. Lysenko não dominava os conceitos modernos de genética e preferia defender um conceito ultrapassado e largamente já deixado de lado no mundo científico, do de Jean-Baptiste Lamarck. 

O Lamarckismo foi definitivamente refutado pela teoria da evolução de Darwin. Lamarck defendia que mudanças no corpo e no fenótipo de determinadas espécies seriam repassadas para seus descendentes, entretanto Darwin comprovou, com larga documentação, conseguida em décadas de expedições, que as mudanças na natureza são aleatórias. A capacidade de adaptação e sobrevivência que as diferentes variações de uma espécie conseguem no ambiente é o que determina a sua sobrevivência e reprodução ou seu fracasso. Essas variações mais bem-sucedidas para sobreviver num determinado ambiente são repassados aos descendentes de uma espécie, mas a variação genética inicial é um acidente, a maior parte das mutações não implica em uma melhor adaptação ao ambiente, e as poucas que por acaso contribuem para a sobrevivência e a reprodução são repassadas adiante.

Lysenko se aproximou de Stalin e o convenceu de que a teoria da Evolução e a Genética mendeliana eram mitos, e que ele poderia conseguir uma produtividade maior para a agricultura soviética com a exposição das sementes de trigo ao frio do inverno russo apenas, pois as mesmas iriam se fortalecer com esse contato e assim haveria um aumento na produtividade, o que redundou em grande fracasso. Ao lado de um ataque anticientífico, foram criados os argumentos que na época eram usados para isolar e destruir os desafetos políticos, e Vavilov foi acusado de ser um preposto ocidental, de conspirar contra a revolução e defender a “Ciência burguesa” de Darwin. 

Em 1932, durante o VI Congresso Internacional de Genética, Vavilov propôs a realização do VII Congresso na União Soviética, e conseguiu aprovar essa realização em 1935 para que fosse realizado em Moscou em 1937. A comissão da Academia Soviética de Ciências decidiu apoiar a ideia e pediu ao Partido Comunista por aprovação, mas apesar do partido ter concordado em julho de 1935 com a proposta e de Vavilov ter sido eleito presidente do congresso, em novembro de 1936 o Politburo (órgão central do Partido Comunista Soviético) decidiu cancelar o evento. A partir daí Vavilov sofreu uma perseguição política aliada às tentativas de desacreditar sua base científica e seu trabalho do banco de sementes em Leningrado. Vavilov mais tarde foi preso, em 6 de agosto de 1940, já durante a Segunda Guerra Mundial, quando estava em uma expedição na Ucrânia para coleta de espécimes agrícolas, e foi sentenciado à morte em julho de 1941. Logo depois sua sentença foi revertida para 20 anos de prisão, mas em 26 de janeiro de 1943 Vavilov morreu, provavelmente de fome, o mal que ele tanto procurou combater com sua pesquisa e esforço científicos. A impressão que ficou foi que essa situação de inanição foi provocada para que o cientista falecesse.

No Brasil de hoje temos médicos e pesquisadores que defendem a Cloroquina, a Hidroxicloroquina, a “imunidade de rebanho”, o “tratamento precoce” e se aproximam do poder central (adepto dessas sandices) para ganhar benesses, mesmo que para isso tenham que subverter a Ciência e suas regras mais básicas. Uma profunda ideologização do debate deixa de lado a observação sistemática, a experiência, a produção de provas, e a Ciência, quando não é desacreditada e atacada diretamente pelo governo central, é distorcida em batalhas virtuais de “fakenews” sem base real ou considerada apenas mais uma “opinião”, tão válida quanto qualquer outra opinião. 

Essa indigência intelectual serve para turvar a percepção da sociedade sobre a responsabilidade do governo federal na condução da pandemia, profundamente negligenciador de medidas de prevenção e combate à transmissão do vírus e de aquisição de vacinas. É preciso criar confusão e discórdia para se eximir das responsabilidades; é preciso evitar o debate racional e com bases científicas e tornar tudo uma questão de “opinião” individual e assim levar à Sociedade para o abismo.

São duas realidades históricas distintas, mas têm em comum vários aspectos. A Ciência pode servir para resolver os grandes problemas sociais, de Saúde, econômicos e culturais da vida na Sociedade, mas para isso deve ter seu método respeitado. Mas a Ciência, como parte do processo cultural e social, está inserida na disputa de valores e de interesses que cingem a comunidade humana, e é preciso ter cuidado para evitar que seja cooptada por projetos autoritários, eugenistas, elitistas. A Ciência deve ser recolocada em seu caminho no ambiente da liberdade, da Democracia, da pluralidade de ideias e da busca da verdade, mesmo que seja inconveniente para determinados interesses políticos ou sociais.

Penildon Silva Filho é professor da UFBA e doutor em educação

Classificação Indicativa: Livre

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