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Mães falam ao BNews sobre a realidade de jovens em centro socioeducativo: “é um verdadeiro inferno”

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De acordo com o atestado de óbito, João morreu asfixiado  |   Bnews - Divulgação Ilustrativa

Publicado em 06/03/2020, às 19h37   Aline Damazio


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“Era para meu menino pagar pelo o que ele fez, mas não com a própria vida. Esperei um ano e dois meses para João* sair da Case melhor [de comportamento] e recebi um corpo e um caixão. De centro socioeducativo não tem nada, Case é um verdadeiro inferno. É menor fugindo, monitor batendo em adolescente, os meninos esfaqueando monitor. É só tensão”. O relato é de Maria*, a mãe do primeiro adolescente assassinado nas dependências da Comunidade de Atendimento Socioeducativo (Cases), no bairro de Tancredo Neves, em Salvador, na última segunda-feira (2).

Um dado que chama atenção para as condições de regime internamento da Case é que, somente nos primeiros dois meses de 2020, já foram registradas sete fugas de menores que cumprem decisões judiciais. A mesma quantidade de ocorrências desse tipo foi registrada em durante todo o ano de 2019, segundo dados da Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac).

O único filho de Maria não foge à regra do perfil da maioria dos jovens infratores que estão internados no centro socioeducativo, conforme dados divulgados em relatório da Defensoria Pública da Bahia. Lá, 96,6% dos adolescentes são negros, 81% têm ensino fundamental incompleto e 24% deles estão na faixa etária de 18 anos.

João era apenas mais um entre os internos da Case, mas tinha valor singular para dona Maria, que ainda chora, sobretudo nos dois dias em que costumava visitar o filho na unidade de recuperação. 

“É muito difícil achar que o filho vai progredir e você receber a notícia que seu filho morreu. Já tinha até separado a merenda para levar no dia de visita. Ainda estou perdida, choro, mas quero Justiça”.

De acordo com o atestado de óbito, João morreu asfixiado por dois colegas de cela. A maneira que aconteceu a morte despertou alguns questionamentos na mãe de João e outras genitoras que possuem parentes no local.

“Onde estavam os agentes socioeducativos quando meu filho foi morto? Não fazem rondas? Nada vai trazer meu filho de volta, mas o crime contra meu filho não será em vão. Vou procurar um advogado para processar a Case. Ele, como outros adolescentes, apareciam com marcas e hematomas de agressões, mas preferiam não falar para não sofrer mais punição”, revelou.

Lei do silêncio
Parece uma peregrinação. Dezenas de mulheres caminham pensativas, com sacolas de compras na ladeira que dá acesso à Case, enquanto aguardam para reverem filhos, sobrinhos e netos.

São mães, tias, avós, que conversam bastante entre si, contudo quando questionadas pela reportagem sobre o tratamentos que os adolescentes recebem no espaço socioeducativo, elas olham umas para as outras, abaixam a cabeça e direcionam o olhar para os funcionários da Case. A maioria delas até sai da roda de conversa para evitarem falar sobre o assunto.

“Ficam mais ou menos seis jovens por quarto, alguns se unem, mas tem as facções aí dentro. Por isso, eles precisam ficar separados. Além dos agentes darem castigos a nossos filhos, de ficarem o dia todo trancados ou apanharem. Eles aparecem com manchas roxas nos corpos, mas é quando estão ‘traquinando’. Os meninos evitam falar conosco com medo de represália. Eles pedem para voltar para casa, mas o que podemos fazer? Acionamos o Ministério Público, mas não dá em nada. Mas eu não vou ter um filho para matarem aí dentro e ninguém dizer quem foi. Armo um barraco até me dizerem a verdade”, desabafou outra mãe, em conversa com o BNews.

A reportagem teve acesso exclusivo a áudios de mães que relatam a violência na Case:

O artigo 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que "Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais".

Cedeca se pronuncia

O coordenador executivo do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca), Valdemar Oliveira, visita a unidade há vários anos e é enfático ao dizer que ela não tem a estrutura ideal a que se destina.

“Há 28 anos tentamos desativar essa Case de Tancredo Neves.  A estrutura não foi construída com essa finalidade de centro socioeducativo. As condições de certas unidades socioeducativas acabam sendo ainda mais perniciosas, pois são adolescentes em formação psicológica e de valores. Com centros de internação adequados eles poderão sair de lá melhores do que entraram, e não piores”.

“Para se ter uma ideia, os quartos têm grades. Aquela unidade é um exemplo do que um centro de socioeducativo não deve ser, já o centro de Simões Filho é o ideal. Já solicitei uma reunião com o gerente e coordenadores do local para saber as medidas que irão fazer sobre o assassinato”, acrescentou o coordenador do Cedeca.

A reportagem entrou em contato com a Polícia Civil, que informou sobre a condução dos supostos acusados do homicídio do adolescente. “A Delegacia para o Adolescente Infrator (DAI) apreendeu em flagrante dois adolescentes internos da Comunidade de Atendimento Socioeducativo (Case), do bairro Tancredo Neves. Eles confessaram o ato infracional análogo a homicídio”, diz a nota da PC.

Ainda de acordo com a polícia, os adolescentes foram reconduzidos à Case para, em seguida, serem apresentados a Promotoria de Justiça da Infância e da Juventude.

Ministério Público entra no caso

O contexto do atendimento socioeducativo é alvo de 38 procedimentos administrativos e quatro ações civis públicas no Ministério Público da Bahia (MP-BA). As medidas adotadas foram desde instaurações de procedimentos administrativos a ajuizamento de ações civis públicas.

São solicitações de inquéritos policiais junto à DAI, bem como a Delegacia de Repressão a Crimes contra a Criança e o Adolescente (Dercca), que averiguam denúncias decorrentes de supostas agressões e maus tratos contra os socioeducandos em cumprimento de medidas socioeducativas.

Em relação ao assassinato do adolescente, o MP-BA informou que foi aberta uma portaria para instauração de procedimento administrativo, assim como solicitado à DAI que apure a veracidade dos fatos e adote as providências necessárias.

Estrutura do  centro socioeducativo

Até março deste ano, cerca de 159 garotos estão na Case de Tancredo Neves e 28 garotas. Ao todo, são mais cinco unidades socioeducativas de Internação, Semiliberdade e cautelar de Internação Provisória. São 533 jovens e adolescentes nas unidades da Fundação da Criança e do Adolescente (Fundac).

Sobre as fugas, a assessoria da Fundac informou que foram adotados procedimentos de acompanhamento dos adolescentes e vigilância por socioeducadores e vigilantes patrimoniais, além das rotinas de controle de acesso, deslocamento e escolta nas atividades externas.

Quanto às circunstâncias que envolvem a ocorrência que redundou em óbito do adolescente, a assessoria disse que os detalhes das investigações e laudo definitivo do IML ainda estão em andamento. Os procedimentos de segurança diurna e noturna seguem uma rotina de distribuição dos socioeducadores nos alojamentos, proporcionalmente à quantidade de adolescentes, e no acompanhamento dos mesmos, durante as atividades diurnas ou noturnas à noite, são realizadas rondas e, na troca de cada turno, é realizada a contagem dos adolescentes.

Ainda de acordo com a Fundação, foram realizadas ações de educação formal, em parceria com as escolas estaduais e municipais que mostram a participação dos adolescentes em concursos literários, premiações e olimpíadas de matemática.

*Os nomes João e Maria foram usados de forma fictícia para preservar a identidade da vítima e da sua mãe, respectivamente.

Classificação Indicativa: Livre

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