Política

Poetas na Praça, modernos e temporãos

Publicado em 28/12/2015, às 12h41    Everaldo Augusto*


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Na segunda metade da década de setenta e na década seguinte do século passado, em plena ditadura militar, um grupo de jovens poetas fez da Praça da Piedade, no centro de Salvador, um território livre. Ali, onde, quase dois séculos antes, foram enforcados os líderes da Revolta dos Malês, por lutarem pela liberdade, outros rebeldes realizavam saraus e recitais nos finais de tarde, diante de uma plateia atenta formada por aposentados, retratistas lambe-lambes, engraxates, estudantes, simples transeuntes e desocupados de toda sorte. Eram momentos de revelação da verve e do talento dos poetas e de deleite da assistência. Mas, nem tudo eram flores. Não muito raro, eram incomodados pela polícia, que via naquele espetáculo algo de subversivo, no que tinham razão. A ordem emanada daqueles versos era subverter a ordem, qualquer que seja.
Dentre os jovens poetas, havia aqueles bissextos, que apareciam de vez em quando, com os poemas debaixo do braço, recitavam-nos e só voltavam tempos depois. Outros que chegavam de malas e bagagens e por ali ficavam, publicavam em pequenas tiragens mimeografadas, faziam suas incursões poéticas em outras plagas e iam ficando. Uns e outros tinham o mesmo status de participantes do grupo, já que, na autogestão não combinada, porém aceita tacitamente, todos podiam ser integrantes, bastava ser poeta e adentrar no território da Piedade/Poesia. Outro elemento comum que os distinguia era o culto a uma plêiade de poetas formada por Gregório de Matos, Castro Alves, Pablo Neruda, Carlos Drummond, cujos versos faziam parte do repertório cotidiano do grupo.
E assim, entre um recital e outro, entre uma passeata e um discurso, algumas figuras se tornavam emblemáticas. O iconoclasta Antonio Short, de inegável erudição, talvez fosse o mais conhecido deles, com seus versos profanos e sua teatralidade impecável dizendo os versos de Gregório de Matos. Short era um dos expoentes dos Poetas na Praça, mas ele não reinava sozinho, aliás, reinar era o que menos interessava àqueles rapazes e moças. O rebelde Geraldo Maia, do magistral “Abertura”, poema digno de qualquer antologia que se faça; o bem falante, e galante, Eduardo Teles; Joelson Meira, o comunista, de vasta cabeleira, a transitar altaneiro e benquisto por todos anarquistas da Praça, autor do antológico “Piedade Poesia”; a poética e incendiária Ametista Nunes, representativa das mulheres poetas da Piedade a nos dizer “...minhas mãos envelheceram/sempre capazes de prestar ajuda...Fiz o que pude, não me guardei”; o anjo Agenor Campos, figura mirrada, porém contundente no verso, bastava vê-lo e dava vontade de protegê-lo, “Seja a vida um eterno voar...” dizia ele. E assim podemos aqui desfilar uma lista enorme de poetas malditos e amados que enchiam de gente a Praça da Piedade todos os dias.
Pela primeira vez teremos oportunidade de acesso a uma parte ilustrativa da produção literária destes Poetas na Praça, através do livro “Movimento poetas na praça / entre a transgressão e a tradição”, publicado pelo Selo Editorial Castro Alves, da Câmara Municipal de Vereadores de Salvador. O autor da façanha é o poeta Douglas de Almeida, ele que foi um dos integrantes do grupo e um dos seus principais articuladores. Além da antologia de 45 poetas, com uma pequena biografia de cada um, o autor incluiu um bonito acervo de fotos e de publicações originais, fac-símile de poemas-cartaz e depoimentos de gente do naipe de Florisvaldo Matos, Araripe Junior e Jolivaldo Freitas. Portanto, além do valor literário, o trabalho de Douglas tem um inegável valor histórico de registro do movimento.
Como disse na apresentação do livro, a obra é um resgate histórico e literário de uma época e nos presenteia com o retrato de um movimento que, através da arte, extrapolava os próprios limites que se imagina que ela tenha. O movimento Poetas na Praça era plurivocal e pluriestético, questionava não somente a ordem política autoritária, mas também o comportamento social conservador imposto por esta ordem, além de questionar a própria estética de arte bem comportada, presa a modelos, quaisquer que sejam. Nesse sentido, ainda que muito localizado na cidade de Salvador e sem que eles assim tenham definido, hoje é possível dizer que os Poetas na Praça faziam uma releitura dos modernistas. Então, podemos afirmar que eles e elas, Poetas na Praça, estavam mais para modernistas temporãos, do que para qualquer outra coisa. É ler a obra e conferir. 
*Vereador, Mestre em Literatura Brasileira pela UFBA e coordenador do Selo Editorial Castro Alves

Classificação Indicativa: Livre

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