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Comunidade trans comemora mais um mutirão de adequação de nome e gênero na Bahia

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A ação é idealizada pela Defensoria Pública da Bahia  |   Bnews - Divulgação Reprodução / Getty Images

Publicado em 29/01/2021, às 14h18   Brenda Viana


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Quando uma pessoa nasce, cresce e não consegue se identificar com aquele corpo com o qual nasceu, ela começa a repensar se existe algo de errado. Porém, depois de muitas pesquisas, entende que, na verdade, é uma pessoa trans. A transição muitas vezes deixa de ser feita devido ao preconceito que é sofrido, principalmente dentro de casa ou até com pessoas que se dizem ‘amigas’. 

O processo de transição, em sua grande maioria, é difícil, pois muitos jovens não conseguem ter acesso à especialistas para ter uma confirmação técnica da sua identidade de gênero. Além disso, as pessoas de baixa renda acabam não tendo condições financeiras para retificar o seu nome nos documentos, já que o cartório é pago.

A partir desta sexta (29), no dia da visibilidade trans, a Defensoria Pública do Estado da Bahia (DPE/BA) vai realizar o mutirão de adequação de nome e gênero para pessoas trans, porém, por meio digital devido à pandemia do novo coronavírus. Em sua quinta edição, o mutirão vai dar oportunidade a inúmeras pessoas que não têm condições financeiras de ter essa alteração no registro civil. Este ano, até o dia 5 de fevereiro, das 8h às 17h, todos que queiram fazer essa adequação deverão entrar em contato pelo WhatsApp, no número (71) 99726-0487.

Victor Hugo, de 25 anos, fez a retificação do prenome e gênero em abril de 2018, um mês após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecer a possibilidade de alterar o registro civil sem mudança de sexo cirurgicamente. Hoje, Bacharel em Direito, jurista e ativista das causas LGBTQIA+, Victor entende que esse mutirão realizado pela DPE é um grande avanço para as pessoas transexuais. “O mutirão é extremamente necessário pois permite a retificação de pessoas de baixa renda, pois em cartório se cobra para retificar e esse mutirão gratuito flexibiliza principalmente as mulheres trans/travesti, grande maioria, marginalizadas, inferiorizadas, fazer essa retificação sem custo”, explica. 

Ele, que está há quatro anos fazendo a transição, começando aos 20/21, explica que todo o processo, desde o momento da protocolização do pedido em abril, até receber a certidão, foi complicado. “Protocolei o pedido em abril, a Tabeliã postergou a retificação para maio e me entregou a certidão em junho [2018]”, falou. 

O jovem teve que fazer uma declaração de próprio punho para indicar a alteração, além de certidões de antecedentes criminais, certidão eleitoral e certidão de situação regular do CPF autenticadas em Tabelionato de Notas. Outra mudança foi a certidão de nascimento, pois as novas podem ter informações que as antigas não tinham, como por exemplo o CPF.  “A certidão não pode constar nada que se enquadre em Transfobia, como por exemplo dizer que minha certidão foi alterada do nome de nascimento para o meu nome atual. O que pode constar na certidão é que ela sofreu uma nova averbação na data da retificação, o motivo da averbação nova somente quem sabe é o cartório. É sigiloso e somente eu posso requerer uma declaração disto caso eu precise”, explicou. Apesar de ter sido sempre acolhido no âmbito familiar, nas escolas ele afirma que sofria bullying, principalmente por ter um comportamento masculino, mas tendo ainda um prenome e gênero feminino à época. 

Nesse caso, a advogada criminalista, Lorena Póvoas, explica que o preconceito, hoje em dia, é equiparado ao crime de racismo, já que existe uma legislação específica que criminaliza esses atos. “Assim como nos crimes de racismo, os crimes de homofobia e transfobia são de Ação Penal Pública, ou seja, o titular da ação é o Ministério Público. Basta que o MP tenha a notícia do crime para que ele inicie o processo penal”, explica. 

Boa parte do público LGBTQIA+ é discriminada publicamente, diante disso, a advogada orienta que a pessoa que foi vítima de homofobia/transfobia praticado na rua, em local público, ou até mesmo em local privado, vá à delegacia que atende a região onde o crime ocorreu, já que em Salvador ainda não tem uma delegacia especializada em crimes LGBTfobia. “Recomendo que vá acompanhada de uma advogada (o) até a delegacia, pois a (o) profissional vai auxiliar o ofendido ou ofendida a produzir provas de forma que o seu direito seja melhor resguardado e a sua defesa seja melhor feita”. 

E quando uma pessoa sofre transfobia/homofobia, isso pode causar transtornos psicológicos, que geralmente são graves à saúde mental da vítima. Geralmente, devido à falta de informação e interesse dos familiares em entender a situação, muitas vezes praticam a discriminação extrema dentro de casa. O ensino de valores éticos no âmbito familiar é essencial para a pessoa que esteja fazendo a transição ou até quem já finalizou. 

Em 2004, no dia 29 de janeiro, o Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde, juntamente com movimentos trans da época, conseguiu lançar a campanha "Travesti e respeito”, onde levou cerca de 27 transexuais e travestis ao Congresso Nacional em Brasília. Mesmo depois de 17 anos tendo o Dia Nacional da Visibilidade Trans, só em 2018 a Organização Mundial da Saúde (OMS) deixou de considerar a transexualidade como um transtorno mental na Classificação Internacional de Doenças (CID). 

“Com certeza representa uma grande conquista, sendo resultado de décadas de luta para que a transexualidade não fosse mais considerada uma patologia. Significa dizer que hoje a autonomia das pessoas está sendo validada e que se pode sim, hoje, apesar de ainda travamos a batalha do preconceito, construirmos nossa identidade de gênero de forma única e singular”, explica a psicóloga Doraci Amorim, que atende, principalmente, pessoas da comunidade LGBTQIA+.

A profissional, apesar de comemorar essa conquista, ainda diz que a homofobia/transfobia permanece atuante na sociedade e repudia qualquer tipo de preconceito, principalmente dentro do ambiente familiar. “Atendo o público LGBTQIA+ e o processo terapêutico exige manejo diante sofrimentos que a homofobia e a transfobia causam, principalmente por ocorrer na maioria das vezes dentro do ambiente familiar, que é o nosso primeiro núcleo social. É muito comum inúmeros relatos de violência física e verbal dentro da própria casa e partindo dos genitores, irmãos, etc”, disse. 

O Conselho Federal de Psicologia, em 2018, disponibilizou uma resolução que orienta os profissionais sobre como conduzir o processo de psicoterapia, de forma a não incentivar, promover ou manter qualquer atitude que possa relacionar com o preconceito ou discriminação. 

Felícia Campo, de 19 anos, afirma que sempre se enxergou como uma menina, mas se compreender em um mundo onde boa parte é Cis-heteronormativo é complexo. “Quem quer ser trans no país que mais mata tal população?”, indagou. 

Ela explica que no início foi difícil falar sobre esse assunto com a família e amigos, mas, aos poucos, conseguiu a confiança e compreensão de ambos os lados. "Sou privilegiada por ser rodeada de pessoas compreensivas, o que ajudou muito em meu processo. Mas já me afastei de pessoas que não se faziam entender”. Ela reitera falando que essa conquista das pessoas trans e travestis em mudar o nome social é ainda longa. “O acesso à adequação de prenome e gênero possui um significado indescritível para a vida das pessoas trans, e é um sonho cada vez mais real”. 

Felícia, apesar de já ter um nome social, ainda não deu entrada para a adequação do prenome e gênero. “Estou enfrentando o processo burocrático de adequação de nome e gênero, pois não estava tendo os mutirões devido a pandemia. Devo concluir no próximo mês. Os mutirões devem ser valorizados pois facilitam tal processo”, finalizou.

O advogado Roberto Araújo, presidente da comissão da diversidade da OAB/BA, ratifica a importância desse mutirão para a comunidade trans e travestis, principalmente devido à luta dessas pessoas, que batalham todos os dias, seja em casa ou no trabalho. “O nome social é um importante elemento na luta pela visibilidade da população trans e travestis. Os mutirões para a retificação de nome são extremamente necessários e a defensoria pública, o MP e diversas outras instituições da sociedade civil, como a OAB, têm feito um excelente trabalho na Bahia, em relação à garantia do nome social às pessoas”. 

Ele ainda acrescenta que a mudança de gênero e inclusão do novo nome social pode abrir portas para a comunidade. “O uso do nome social abre muitas portas para a inserção de pessoas trans e travestis no mercado de trabalho, além de dar uma maior segurança para essas pessoas na busca por empregos formais”.

Classificação Indicativa: Livre

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