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Remédio cada vez menos amargo

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Bnews - Divulgação

Publicado em 09/06/2020, às 06h05   Luiz Felipe Fernandez


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Perto de ultrapassar a marca de 600 mortes por Covid-19 nesta segunda-feira (8), Salvador convive há uma semana com a autorização para abertura de lojas de decoração, concessionárias, lavanderias e outros estabelecimentos. É o início da diluição do "remédio amargo", como se refere o democrata e o governador Rui Costa sobre o distanciametno social.

O prefeito ACM Neto bateu o pé que e jurou que não se trata de uma "flexibilização". Inclusive, em coletiva que anunciou as mudanças na secretaria - onde jurou também não se tratar de política - afirmou que por vezes a imprensa "pega o lead errado". Para ele, o fato principal que deveria ser noticiado é a prorrogação do fechamento de escolas e shoppings, por exemplo. 

Mas o problema, prefeito, não é o "lead" escolhido pela imprensa, que tampouco deveria ser sugestão sua. O problema é a taxa de contaminação, repetidamente defendida como critério para a mudança nas normas de distanciamento social, que não caiu ainda de forma a justificar tal decisão. 

Nas redes sociais, o efeito do decreto já é percebido, com clínicas de estética e SPA voltando a atender os seus clientes, ainda que obedecendo aos novos protocolos determinados pelo município. Cá entre nós, celulites, estrias e rinoplastias podem esperar mais um pouco.

Há pouco mais de um mês, um estudo da UFBA apontou que 50,1% dos soteropolitanos aderiam ao isolamento, índice menor do que recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), entre 60% e 70%. Não que seja fácil para todos ficarem em casa, visto a ineficiência da distribuição do auxílio-emergencial.

Por sinal, Neto já deu umas boas alfinetadas na Caixa Econômica, mas não lemos uma linha sobre o Ministério da Cidadania, responsável por elaborar a estratégia e centralizar todos os depósitos em apenas um banco, que é chefiada pelo colega de DEM, Onyx Lorenzoni.

A tendência de agora em diante, portanto, é que presenciemos um aumento no número de pessoas e veículos nas ruas. Não apenas pelos serviços que voltam a funcionar (clientes e funcionários), mas pelo efeito subjetivo que a decisão carrega. Nós, ansiosos e desesparados para voltar a um tempo de normalidade, podemos encarar como um sinal de que as coisas estão melhorando. Será?

O panorama relativamente confortável de Salvador e da Bahia em geral da taxa de ocupação de UTI abaixo de 70%, em comparação com outros lugares do país, pode até ser um alento.

Porém, com o crescimento diário de infectados, a perspectiva é que essa porcentagem não se mantenha. Até porque a capacidade orçamentária do Estado e do Município para expandir novos leitos, equipando-os com respiradores e contratando profissionais, está bem perto de se esgotar.

No dia 1° de junho, quando Neto anunciou que alguns setores voltariam a funcionar com regras específicas, a capital baiana registrava 11.431 casos de Covid-19 e 474 óbitos. Neste mesmo dia, 1204 testes rápidos realizados em uma blitz nos bairros que passavam por normas restritivas mais rígidas detectaram 217 pessoas contaminadas: 18% de incidência. 

Em menos de uma semana, o número de infectados na capital saltou para 16.001: um aumento de 39% de casos e 26,5% de mortes.

Neste período, houve dia que registrou taxa de crescimento de 12%, o dobro do defendido pelas autoridades como parâmetro para se pensar em flexibilização, e ainda mais distante da curva descendente de contaminação, como é recomendado pela OMS para que se adote a retomada gradual das atividades.

Todos os estados e municípios do Brasil participam da instensa queda-de-braço com setores do comércio, que clamam pela reabertura em prol da economia, e com a própria posição do Governo Federal - ou melhor, ausência dela - sobre as diretrizes de combate ao novo coronavírus. 

O que tenta se fazer no país não tem precedentes. Ou melhor, tem. A Suécia, que adotou uma das políticas mais brandas de isolamento na Europa, colhe os frutos podres da desgraça que foi plantada e carrega os corpos de mais de 4.300 pessoas, o que rendeu ao país escandinavo o nefasto título de maior índice de mortalidade por milhão de habitantes na região. 

Em Salvador, pelo visto, a pressão do empresariado não é menor. Na mesma coletiva em que Neto acusou a imprensa de inverter o lead, já no fim da sua fala, admitiu que não foi fácil resistir até agora com as normas restritivas. Parabéns pela firmeza. 

No entanto, o "remédio amargo", como comparam Neto e Rui ao isolamento - daquele que precisa tomar "de vez" para curar a doença - está cada vez menos amargo, cada vez mais doce. O resultado final, nem tanto.

Parafraseando o próprio prefeito, uma "restrição mambembe", mal feita, pode terminar enterrando o seu excelente trabalho frente à pandemia, nas mesmas valas dos corpos dos mortos por Covid-19.

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