Economia & Mercado

Crise do Covid-19 e a lógica da política de tributação sobre as empresas multinacionais

Arquivo Pessoal
Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 04/09/2020, às 18h08   Caio Andrade e Victor Andreoni*


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O comércio internacional atualmente é marcado pela fragmentação produtiva em espaços geograficamente diversos. Essa divisão promoveu mudanças significativas na forma como as empresas e os países lidam com o comércio multilateral. Neste sentido, podemos citar três pontos fundamentais que alicerçaram as relações comerciais conhecida hoje em dia: o primeiro foi o fim do modelo de substituição de importações que culminou no abandono de uma política industrial focada; o segundo foi o avanço nas tecnologias de informação e comunicação, implicando em uma redução dos custos de produção transfronteiriços, a partir dos anos de 1980; e terceiro, a liberalização financeira a partir da década de 1990, marcado pelas privatizações e redução de barreiras comerciais.

Diante desse cenário, as empresas multinacionais (EMN) ganharam cada vez mais espaço na agenda econômica global, transformando-se em uma das principais estratégias de transferência tecnológica para os países periféricos. Segundo a Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), mais de 80 países em desenvolvimento modificaram as suas políticas econômicas de substituição de importações para políticas orientadas para exportações . Portanto, a entrada das EMNs nos países periféricos significou uma influência direta das empresas estrangeiras na natureza das estruturas e no desenvolvimento econômico desses países.

Deste modo, o processo conhecido como globalização foi colocado como uma janela de oportunidade para o desenvolvimento dos países periféricos, que passaram a pautar as suas políticas econômicas na atração de investimento direto do estrangeiro (IDE) para seus respectivos países. O IDE designa um investimento que visa adquirir um interesse duradouro em uma empresa cuja exploração ocorre em outro país que não o do investidor e com o objetivo de influir efetivamente na gestão da empresa em questão. Existem duas características essências na maneira como o IDE é inserido nas economias: a primeira é o investimento de caráter greenfield, que tem como objetivo a construção de plantas produtivas do zero e envolve transferências tecnológicas. A segunda é o de caráter cross-border, que tem por objetivo a compra e aquisições de estruturas produtivas já prontas, sendo este o investimento predominante nos países periféricos. 

Ao contrário do que muitos autores defendem dos benefícios do investimento estrangeiro direto, as políticas de atração de IDE não vêm se demonstrado satisfatórias, pois apesar do aumento do IDE nos países periféricos, os mesmos ainda se concentram nos países centrais, além disso, os países periféricos não conseguiram alcançar o patamar de renda e tecnologia dos países centrais. Segundo a UNCTAD (2016), no ano de 2015 os países desenvolvidos como Estados Unidos, Japão e Reino Unido receberam US$ 962 bilhões e voltaram à condição de principais receptores dos fluxos globais de IDE (55%) .

Outra circunstância que sempre marcou as relações entre as nações foi o protecionismo, aspecto que nos introduz ao tema da tributação dentro da atmosfera das relações internacionais de comércio. Dentro dessa lógica, países utilizam ferramentas para proteger determinados setores e também gerar receitas para os governos. Numa estrutura internacional com forte presença de empresas multinacionais e competição entre os países para atrair investimento, a tributação, como uma das ferramentas, ganha cada vez mais importância e se torna ainda mais presente em debates dentro organizações como a Organização Mundial de Comércio (OMC) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Governos oferecem cada vez mais incentivos às multinacionais devido ao aprofundamento da competição internacional por investimento. Esses incentivos podem ser, entre outros, infraestrutura, menor custo da força de trabalho e leis tributárias mais brandas. Porém, além dos incentivos recebidos, as empresas multinacionais estão cada vez mais especializadas em elisão fiscal. As EMNs têm investido cada vez mais em equipes de advogados tributaristas que buscam benefícios dos governos e meios de pagar menos impostos. Outra conduta é a adoção de uma estrutura coorporativa que transfira o lucro das empresas para paraísos fiscais. Embora tenham surgidos, por parte de governantes, promessas políticas para coibir a elisão, essas são acompanhadas de mais incentivos por parte dos governos para atrair multinacionais.

Olhando agora para a nossa atual realidade, estamos nos aproximando paulatinamente de uma ressaca fiscal. A pandemia do novo coronavírus reduziu a arrecadação dos governos, seja por diminuição dos fluxos comerciais ou por diminuição do consumo. Por outro lado, a pandemia também aumentou os gastos dos governos, principalmente com saúde e seguridade. Gastos estes que devem aumentar ainda mais, pois a recuperação econômica demandará muito dos governos (direta e indiretamente). 

Devido ao aumento dos gastos governamentais e diminuição das receitas, os governos estudam maneiras de aumentar a arrecadação. Os atuais sistemas tributários são considerados ultrapassados. pois cobram as empresas a partir de onde elas estão localizadas fisicamente. Entretanto, com a lógica da fragmentação produtiva, as empresas obtêm lucros em diversos lugares (principalmente as empresas digitais). O consenso que vem surgindo internacionalmente é a ideia de um novo sistema de tributação, e isso se torna cada vez mais evidente com a pandemia.

Por conta de não existir uma solução única para todos os países, é necessário que essa renovação seja feita em conjunto para evitar um acirramento das disputas entre as economias. A OMC e OCDE são entidades que estão liderando os debates sobre uma reforma tarifária, mas vale ressaltar que estas sofrem influência das principais potências econômicas. As potências econômicas são grandes interessadas por possuírem sistemas tributários mais forte, pois EMNs tem a possibilidade de transferir lucros às jurisdições de baixa tributação.

Um dos principais pontos a ser atacado é a baixa tributação de empresas multinacionais. A OCDE tem se concentrado nesse cerne , e apresenta duas propostas: a primeira, chamada de “pilar 1”, fortalece o direito dos países tributarem as empresas a partir das vendas em seus territórios, independentemente de onde a empresa é legalmente constituída (um ganho para a maioria das grandes economias e uma perda para os paraísos fiscais); o “pilar 2” tenta criar um patamar mínimo de imposto a ser aplicado sobre todas as multinacionais (com o objetivo de não aprofundar a competição entre países).

Num mundo pós pandemia, as reformas nas instituições é algo que se tornou necessário, principalmente com o abismo de desigualdade que o novo coronavirus deixou evidente. Sendo o sistema tributário uma das instituições que se mostrou perecível, é necessário que um novo sistema combata, antes de qualquer coisa, a desigualdade.

*Cairo Andrade - Pesquisador do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestrando em Economia na Faculdade de Economia da UFBA. Graduado em Economia na Faculdade de Economia da UFBA.

*Victor Andreoni - Pesquisador do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduando em Economia na Faculdade de Economia da UFBA.

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