Economia & Mercado

Cooperativas de entregadores: saída para a precarização do trabalho?

Arquivo Pessoal
Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 24/09/2020, às 18h42   Sara Costa e Victória Vilas Boas*


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Com o contexto da pandemia da COVID-19, as condições de trabalho dos entregadores por aplicativos ganharam visibilidade e incentivaram o debate a respeito da precarização dessa ocupação. Levantamentos[1] apuram como a atividade de entregas via aplicativos, já precária, se deteriorou durante a pandemia, ao mesmo tempo que este serviço foi enquadrado como essencial. As empresas de delivery plataformizadas utilizam a retórica do empreendedorismo para sustentar seu modelo de gestão da força de trabalho, buscando disfarçar, mas de fato intensificando o controle e a subordinação dos entregadores, sem reconhecer seu vínculo empregatício, e por consequência, seus direitos laborais.

Como uma tentativa de escapar de sua condição precária e do próprio assalariamento, parte dos entregadores tem buscado novas formas de organização do trabalho através de cooperativas. A concepção por trás do cooperativismo não é recente e iniciativas dessa natureza remontam aos primórdios do capitalismo, muito antes dos chamados “aplicativos” surgirem. A ideia se baseia na extinção da subordinação dos trabalhadores, permitindo-os seu próprio e livre gerenciamento do trabalho, para atuar verdadeiramente como autônomos.

Recentemente, algumas cooperativas de entregadores têm se organizado no Brasil, influenciadas por mobilizações no exterior, principalmente na Europa. Enquanto no contexto europeu, as cooperativas se apropriam de plataformas digitais para organizar sua rede de trabalhadores, no Brasil, as iniciativas se apoiam em sites, páginas no Instagram e contatos por WhatsApp. O intuito, no entanto, é o mesmo: se esquivar do monopólio das empresas de delivery e estabelecer uma gestão mais justa do processo de trabalho, onde os entregadores possam acordar as taxas de entrega, as rotas traçadas, escolher seus horários de trabalho e quais pedidos aceitarão, sem serem penalizados por isso.

No contexto internacional, entregadores ligados ao sindicato RidersxDerechos criaram a cooperativa Mensakas[2], na Espanha, após o desligamento arbitrário da Deliveroo. O principal objetivo do grupo, a partir do uso de uma plataforma própria e da gestão coletiva do trabalho, é de lutar contra as péssimas condições de labor estabelecidas pelas grandes empresas de delivery. Outro exemplo é a Urbike[3], uma cooperativa existente na Bélgica que tem os mesmos objetivos das demais, além de propor uma mobilidade urbana sustentável. A CoopCycle[4] é uma federação de cooperativas presente em 30 países, em sua maioria europeus, que surgiu em 2017, e é composta por um grupo de voluntários e com software próprio, tendo como eixo central a criação de um modelo econômico anticapitalista baseado na coletividade.

No Brasil, essa iniciativa vem sendo difundida nos veículos de imprensa, redes sociais e entre os entregadores, principalmente, após as recentes mobilizações e os “Breques dos Apps”, ocorridos nos dias 01 e 25 de julho. Atualmente, existem cooperativas em funcionamento ou em processo de consolidação em alguns estados brasileiros[5]. A Ciclo Courier, fundada no Rio de Janeiro em 2012, é um exemplo deste modelo e realiza serviços de entregas de bicicleta, assim como a Señoritas Courier, a Pedal Express e a Pedivento em São Paulo (SP), Porto Alegre (RS) e Florianópolis (SC), respectivamente. Os Despatronados são uma cooperativa em processo de crescimento, criada pelos Entregadores Antifacistas do Rio de Janeiro.

De fato, as cooperativas geridas pelos próprios entregadores podem ser uma alternativa genuína à precariedade do assalariamento disfarçado, eliminando a subordinação ao empresariado e promovendo uma organização coletiva da classe trabalhadora. Assim, através da participação de todos os membros e de suas contribuições definidas de maneira transparente, haveria um contraponto ao sistema algorítmico das empresas. No caso do cooperativismo de plataforma, o sentido é se apropriar das tecnologias utilizadas pelas companhias para explorar e subordinar os trabalhadores, e proporcionar a gestão coletiva do trabalho, assim como a propriedade coletiva da própria plataforma. Segundo Trebor Scholz[6], o cooperativismo de plataforma une valores democráticos, a solidariedade e ressignifica conceitos como inovação e eficiência para beneficiar a todos, trazendo criatividade não só para o consumo dos produtos, mas também para a reorganização do trabalho.

Essas iniciativas são um desafio no atual contexto da precarização e da intensificação da exploração do trabalho plataformizado. A organização autônoma dos trabalhadores de entrega como alternativa de fuga da exploração e subordinação das empresas plataformizadas enfrenta grandes desafios, dentre eles: 1) a competição com grandes capitais para a realização serviços e o rebaixamento das condições de trabalho como forma de sobrevivência, 2) a dificuldade em manter estruturas democráticas no interior de formas competitivas de sociabilidade (mercado) e que tendem à diferenciação e hierarquização em caso de sucesso, 3) talvez o mais evidente para o caso dos entregadores,  a possibilidade ou tendência de que as cooperativas se tornem meras intermediárias para as empresas que contratam os serviços de entrega, algo que não é inédito, reproduzindo a precarização atualmente vigente.

*Sara Costa - Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA), Graduanda em Economia pela Faculdade de Economia da UFBA,  e integrante do projeto Caminhos do Trabalho (MPT/UFBA).

*Victória Vilas Boas - Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA), Graduanda em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA,  e integrante do projeto Caminhos do Trabalho (MPT/UFBA).

Classificação Indicativa: Livre

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