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À espera de um julgado

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Publicado em 23/02/2021, às 09h00   Tiago Almeida Alves


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A pandemia bagunçou a agenda do mundo. Em melhores circunstâncias, ouviríamos “o ano só começa depois do Carnaval” em rodas de conversa. Compromissos, desarranjos, a postergada dieta e tantas outras promessas costumavam ficar em suspenso até a quarta-feira de cinzas.

Vive-se hoje como se a realidade fosse descolada da folha do calendário, e vagasse em órbita, até o problema ser resolvido.

Quando o assunto diz respeito a direito e tecnologia, no entanto, essa percepção de descolamento do tempo é mais frequente ainda – com ou sem pandemia. A evolução tecnológica afetou o mundo de tal modo que, em muitas ocasiões, pegou os homens e as mulheres da lei de calças curtas. De apps de transporte sem regulamentação a redes sociais fora do ar numa canetada judicial, vê-se que o direito nem sempre acompanhará a vida tecnológica e a economia compartilhada na mesma velocidade.

Uma controvérsia em específico parece ter deixado “em suspenso” condomínios, proprietários, inquilinos e empresas – além de seus advogados – na expectativa de um julgamento que dá o que falar: trata-se do Recurso Especial nº 1.819.075, popularmente conhecido como “Caso AirBnB”, pendente de julgamento no Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O caso diz respeito, em síntese, a uma disputa entre um condomínio e dois moradores em Porto Alegre, na ocasião em que o condomínio buscou impedir os proprietários de alugar seus imóveis a terceiros através do aplicativo da empresa em questão, por transformar o ambiente exclusivamente residencial em algo semelhante a uma hospedaria. Após algumas decisões desfavoráveis – e seus respectivos recursos – a proprietária levou o caso ao STJ alegando violação do seu direito de propriedade.

Nas mãos do Tribunal Superior, portanto, foi dado o papel de julgar o caso e – mais importante ainda – definir um precedente ao qual os juízes e desembargadores de todo Brasil deverão seguir quando surgir a seguinte questão: o condomínio poderá proibir o proprietário de alugar o seu próprio imóvel para curtas temporadas através de aplicativo?

Em outubro de 2019, o ministro Luís Felipe Salomão, relator do processo, iniciou o julgamento com voto no entendimento de ser possível o aluguel do imóvel, mesmo que a acomodação seja acompanhada de outros serviços como lavanderia e disponibilização de WiFi.

O segundo julgador (são cinco ao total), ministro Raul Araújo, pediu vistas para análise do processo no mesmo mês, e desde então o processo encontra-se parado. A justificativa do eminente ministro é dada pelo ineditismo de um processo envolvendo plataformas digitais, devendo-se estudar melhor o caso para firmar tese no órgão colegiado.

A decisão de alugar, no mundo dos fatos, depende apenas de poucos cliques em um computador ou smartphone. De outro lado, no mundo do direito, segue-se estacionado na ideia de que os fatos foram mais rápidos do que as letras da lei novamente.
Com todo respeito, entretanto, segue-se estacionado de modo desnecessário.

Dispensando-se de discutir o mérito da questão – existem posições de juristas consagrados tanto pelo sim quanto pelo não –, percebe-se o mundo do direito a ver um peixe rápido em suas águas, sem atentar-se que existem anzol e arpão suficientes para pegá-lo – e desde 1990.

As locações de curta temporada são reguladas no país pela legislação há mais de três décadas. Seja através de contrato por escrito, acordo verbal, bilhete de papel ou por aparelhos modernos, fazendo-se uso dos aplicativos e da internet, a essência do contrato continua sendo a mesma: locações de até 90 dias para uso exclusivo residencial.

Com regulamentação clara, não há margem a pensar que – dessa vez – a tecnologia se sobrepôs ao direito. Por mais que exista um sem-fim de interesses financeiros – e de fato existe, ao ponto da empresa se qualificar como assistente da proprietária no processo em Brasília –, o ponto em questão até pode ser inédito, contudo não é inovador.

Enquanto isso, a sensação “em suspenso” segue viva, à espera de um julgado que pode impactar milhares de condomínios em todo país.
Talvez ainda leve tempo para que o calendário e a vida real se realinhem, fazendo do carnaval um verdadeiro feriado. Depende de vacina, logística, e outras coisas.

Que o destino dos condomínios e das locações de curta temporada não precise aguardar o Momo mais uma vez para ser resolvido.

Tiago Almeida Alves é colunista do BNews, advogado formado pela UFBA, pós-graduado em Direito Imobiliário, Urbanístico, Registral e Notarial pela UNISC-RS.

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