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Fake News, Educação, Pós-Modernismo conservador e Ciência

Imagem Fake News, Educação, Pós-Modernismo conservador e Ciência
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Publicado em 24/06/2019, às 08h11   Penildon Silva Filho


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No debate acerca dos contingenciamentos e cortes na Educação pelo atual governo federal, tanto na Educação Básica quanto superior, uma chuva de informações, dados, “cards” e declarações em redes sociais parecem procurar estabelecer uma versão de que não estaria havendo no presente momento nada diferente do que ocorreu nos governos anteriores de Lula e Dilma no tocante à diminuição de recursos para a Educação pública nacional. Segundo vários defensores do governo recém empossado, a Educação sempre teve reduções no seu investimento ao longo dos últimos 15 ou 20 anos. E não haveria legitimidade em se reivindicar que o orçamento não deveria ser contingenciado, bloqueado ou mesmo cortado agora em 2019 por conta desse suposto passado.

O debate político nacional, já bastante acalorado por revelações do “The Intercept” que colocam em cheque a Lava Jato, pela greve geral contra a reforma da previdência em junho e por duas grandes manifestações contra os cortes na Educação no mês de maio, parece se perder na disputa de narrativas impulsionada por robôs e militantes reais na internet que procuram defender o atual governo com a versão de que não estaríamos com nada diferente do que ocorreu em governos anteriores. Trata-se da expressão da disputa de narrativas no debate público e político baseado em “fake news”, que se apresentam como equivalentes a informações corretas.

Esse debate das “fakes” tem um paralelo hoje no ataque às Universidades e à Ciência com o argumento de que todo conhecimento se equivale e é igualmente válido, incluindo aí um “negacionismo” histórico e uma tentativa de recontar os fatos históricos com um nítido interesse político-ideológico. Procuraremos analisar essa disputa de narrativas sobre a Educação e seu irmão gêmeo, o “pós-modernismo conservador” que apresenta sua compreensão do mundo sem necessidade de um escrutínio científico ou confrontação de fatos e argumentos lógicos.

No tocante ao financiamento da Educação, qual foi a evolução do financiamento da Educação desde o início do século XXI? No argumento dos defensores hoje da austeridade governamental, não estaríamos diminuindo o investimento em Educação, e esse governo seria igual a todos os anteriores. É um argumento contraditório aos discursos do mesmo governo, pois tanto o primeiro ministro da Educação de Bolsonaro quanto o atual se pronunciaram fortemente contra a ampliação da Educação Superior e defenderam a diminuição da cobertura da mesma, assim como atacaram fortemente as políticas de democratização e ampliação de acesso e permanência, a expansão das universidades federais, a ampliação de cursos e vagas com o Programa Nacional de Reestruturação das Universidade Federais (REUNI), as cotas sociais e raciais e a expansão dos Institutos Federais e Universidades para o interior do país. Como seria possível atacar tamanha expansão e num mesmo discurso indicar que hoje se faz o mesmo corte que se fez no passado? Como teria sido possível ampliar o acesso e a permanência se não houvesse expansão do financiamento num passado recente?

Devemos utilizar os dados oficiais do Estado brasileiro, que são acessíveis a todos e sobre os quais não devem recair desconfianças. Utilizando os dados e a metodologia do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do Governo Federal (SIOP), que estão à disposição de qualquer cidadão, percebe-se outra realidade. Pelo SIOP é possível visualizar os gastos do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União. Neles estão contidos tanto os gastos diretos do governo federal em educação quanto as transferências governamentais para Estados e municípios. De acordo com os dados do SIOP de 2000 a 2018, cerca de um terço da dotação atual da função Educação (que foi de cerca de R$1,04 trilhão), foi alocado na dotação da subfunção Educação Superior (o maior peso em termos de valor de dotação para uma subfunção da função Educação). Desde o início do governo Lula e até o ano de 2015, o último do governo Dilma, antes do golpe parlamentar-judicial-midiático que a derrubou, houve constante expansão da função Educação em termos reais, mas com queda de 2015 a 2016, justamente na passagem para o governo Temer.

Da mesma forma, os recursos da Educação Superior tiveram um crescimento real acentuado de 2003 a 2015, mas de 2015 a 2016 houve queda real da dotação nos valores empenhado, liquidado e pago. A tese da doutora Ana Luíza Matos de Oliveira, defendida no Instituto de Economia da UNICAMP, “Educação Superior brasileira no início do século XXI: inclusão interrompida?” faz a compilação desses dados e ainda utiliza os valores corrigidos pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) na data de 30/06/2017, o que permite comparar os valores reais. A pesquisadora utiliza apenas os dados do SIOPE.

Começamos em 2003 com 17 bilhões de reais de recursos liquidados do orçamento, que é o que realmente se pagou naquele ano, e chegamos a 35 bilhões em 2015, último ano do governo Dilma antes do golpe. Em 2016 já passa a haver uma redução para 30 bilhões de reais liquidados, valor mantido em 2017. Sabemos que em 2018 o orçamento da Educação sofreu cortes e fortes reduções, e agora em 2019 já há um contingenciamento de 30% do orçamento e outros 30% estão bloqueados pelo governo até a presente data. A redução de recursos começa no governo Temer e se aprofunda no governo Bolsonaro, irmanados pela política de austeridade fiscal que se apresenta como uma política que tiraria o Brasil da crise econômico, mas que na realidade só faz aprofundar a mesma. Nos gráficos construídos pela pesquisadora Ana Luíza Matos de Oliveira em sua tese há uma riqueza bem maior de detalhes.

A redução de investimentos públicos, o corte de direitos sociais, o congelamento de investimentos públicos por 20 anos estabelecido pela emenda constitucional 95, ainda de dezembro de 2016, toda essa política que já está entrando em seu quarto desastroso ano não cumpriu sua promessa de garantir a volta do crescimento econômico.

Na verdade o receituário neoliberal de austeridade fiscal, reforma trabalhista para retirada de direitos sociais dos trabalhadores com a promessa do ministro da Economia Henrique Meirelles de que isso criaria mais de 5 milhões de novos empregos (o que já se revelou uma inverdade) e privatização das empresa estatais não funcionou em outros países, e apenas aqueles que seguiram o caminho oposto conseguiram retomar o crescimento econômico com criação de empregos e diminuição das desigualdades sociais. Após a campanha pela reforma trabalhista em 2017 de que a mesma traria a volta do desenvolvimento e da criação de empregos no Brasil, agora vivemos a campanha forte de mídia e dos grandes bancos e empresas do capital financeiro pela reforma da previdência, para entregar a contribuição dos trabalhadores para esses agentes da especulação financeira usarem os seus recursos alheios como bem lhes aprouver pelo regime de capitalização.

Não é possível compreender os cortes na Educação sem analisar a política de austeridade fiscal, de privatizações, de redução dos investimentos públicos dos governos Temer e Bolsonaro, que não cumprem a promessa de gerar riqueza para as maiorias, muito pelo contrário, as últimos pesquisas indicam que os mais ricos voltaram a aumentar sua riqueza e sua participação na renda nacional, enquanto os mais pobres ficaram mais pobres, com o Brasil atingindo o maior nível de desigualdade desde que a série histórica começou a ser feita em 2012 ( Ver link: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2019/02/26/desigualdade-e-a-maior-em-sete-anos.htm)

Os ataques ao bom senso e ao bom debate pelas “fake news” que tentam forjar um universo paralelo sem base real ou informações minimamente verificáveis na discussão sobre financiamento da Educação, para tentar igualar os governos que garantiram a expansão da Educação Superior pública entre 2003 e 2015 e os atuais representantes da “austeridade fiscal”, não estão isolados. Esses ataques encontram similares em outras facetas da disputa política e cultural nos dias atuais, especialmente no ataque à Ciência e ao seu lócus natural, a Universidade, na tentativa de legitimar outras campos do saber e de compreensão histórica. Hoje há uma estratégia e um discurso claros de que a Ciência é apenas mais um saber, e não mais o que deve ser levado em conta. Defensores do “terraplanismo” (a ideia de que a Terra é plana), assim como de outras ideias como o Geocentrismo que se contrapõe à toda Ciência moderna de Copérnico, Galileu, Kepler; e do criacionismo que se contrapõe à Teoria da Evolução das Espécies de Charles Darwin inundam a internet e os debates governamentais.

O ideal de Escola Nova de Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e seus sucessores como Darcy Ribeiro e Paulo Freire de se ter uma escola laica, separada das igrejas, como lócus da Ciência, do pensamento crítico, do espaço da pluralidade pedagógica, da busca da verdade com base em evidências e construção da cidadania precisa ser novamente revisitado, pois há todo um movimento de tentativa de aprisionamento das instituições de ensino por uma visão teocrática e obscurantista, que envolve gestores públicos, “gurus” financiados por grupos estrangeiros, grupos fundamentalistas com ampla penetração na mídia, no parlamento e no mundo econômico. A campanha da “Escola Sem Partido” é apenas uma das estratégias dessa visão, ao lado da volta do ensino religioso de caráter proselitista em escolas públicas e alterações do currículo segundo “padrões cristãos” contrários às concepções inclusivas da Educação nos últimos 30 anos.

Esse obscurantismo já tem vítimas fatais. Há todo um movimento de questionamento e deslegitimação da Ciência que ataca a Medicina e a política de vacinação em massa. Fundamentalistas e adeptos de “teorias da conspiração” delirantes vem fazendo uma campanha forte para convencer as pessoas a não se vacinarem nem vacinarem suas crianças, e doenças antes praticamente erradicadas voltam a preocupar os gestores em saúde pública. Veja o link: https://www.conass.org.br/consensus/queda-da-imunizacao-brasil/, onde é argumentado: “Em tempos de excesso de informações e superficialidade de conteúdos, muitas pessoas em todo o mundo, principalmente na Europa, vêm aderindo a um movimento conhecido como anti-vacina. Seja por questionarem a segurança da vacina, por temerem os efeitos colaterais, ou por acreditarem que não estão suscetíveis às doenças, estes grupos estão crescendo cada dia mais, levando países desenvolvidos, como a Itália, a se depararem com surto de doenças há muitos anos erradicadas, como o sarampo. Cabe reafirmar que é inevitável o fluxo de pessoas entre os países, tanto pelo turismo quanto pelos negócios, e o fato de algumas delas não estarem vacinadas pode provocar seu adoecimento e trazer de volta doenças extintas e todos os problemas de saúde pública que elas acarretam.” Ou ainda a matéria da Sociedade Brasileira de pediatria, na seção Goiás: https://www.sbp.com.br/filiada/goias/noticias/noticia/nid/movimento-antivacinas-pode-trazer-doencas-erradicadas-de-volta/

Além dessas vítimas fatais no campo da Saúde, temos as vítimas na Cidadania, com a tentativa de mudar os currículos, revisar os livros de História, Geografia, extinguir a Sociologia e a Filosofia na Educação Básica. Também está no radar desse movimento anti-iluminista a destruição dessas áreas do Conhecimento na Educação Superior. Um movimento pela Democracia em nosso país e no mundo não pode descuidar dessa disputa cultural de valores e de se ter escrutínio da verdade por critérios científicos.

Penildon Silva Filho é professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Doutor em Educação

Classificação Indicativa: Livre

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