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Cancelar para reabilitar ou sentenciar para isolar? A pena de morte do brasileiro é digital?

Arquivo Pessoal
Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 06/03/2021, às 12h25   Cleyton Brandão


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“Juíz de internet caga se espalhando feito peste”.  Karol Conká

Ubiquidade. Faculdade divina de estar concomitantemente presente em toda parte. Fato de estar ou existir concomitantemente em todos os lugares, pessoas e coisas. Trazendo esse conceito para a cotidianidade da rede digital e seu poder de rápida disseminação de fatos, entendemos que a internet proporciona a ubiquidade da informação. 
Nada escapa das redes. Através de um smartphone ou dispositivo móvel com funções similares, todo e qualquer episódio do ambiente virtual ou não é capturado pelas lentes dos celulares e compartilhado em rede.                       

Nessa contextura, entendemos que as ações e discursos dos sujeitos na cotidianidade são observados e julgados por todos. Quando posto em rede, esses comportamentos são expostos há um quantitativo maior de indivíduos e, assim, sentenciados positivamente ou negativamente.                             

Não existe anonimato na rede para qualquer pessoa que a acesse. Quando se trata de figuras públicas, a vigilância e cobrança por comportamentos e opiniões que convergem com a maioria ou um determinado grupo de usuários da internet é mais latente; e qualquer discrepância ou passo fora desta linha é visto como motivo para o cancelamento digital.                                         

O cancelamento digital ou “cultura do cancelamento” é uma prática social da cotidianidade fomentada pelas tecnologias da informação e comunicação, engajada nas redes sociais. Para Rodrigues (2020), podemos entendê-la como um acerto público de contas – uma espécie de júri popular –, além de um pedido de ajustamento de condutas e comportamentos em relação à alguma transgressão social que não passou no controle de qualidade dos usuários da rede.                                     

A estruturação do cancelamento consiste em um grupo de sujeitos que se interligam em torno de um sentido ou ideologia em comum, estabelecidos por princípios identitários – raça, gênero, orientação sexual, classe social, posicionamento político. Nesse contexto, movidos pelo entendimento de que todos se identificam entre si por algum aspecto ou postura fundamental e basilar a essência de cada um, esses indivíduos convergem num movimento de cancelar algo ou alguém. (GOMES, 2020)            

Ademais, a estrutura do cancelamento também está pautada em convenções e normas de um determinado grupo de pessoas que servem como referência para avaliar outrem – geralmente pessoas ou instituições com visibilidade e/ou notoriedade na sociedade. Os “canceladores” partem da proposição de que, naquele determinado momento, são personas moralmente superiores a quem está sendo cancelado, e seu principal objetivo é retirar a influência do alvo do cancelamento das redes sociais e da polis em geral. É o júri popular digital sentenciando medidas disciplinares a quem eles acreditam que precisa.                                         

De certo que, os cancelados, verdadeiramente cometem erros – até graves – em suas posturas, e a liberdade de expressão autoriza que os usuários da rede questionem e contestem esses comportamentos; visto que não existe verdade absoluta, e quem se sente ferido por uma ação e/ou discurso deve externalizar sua dor para a sociedade. Mas, essa externalização da dor visa resolver a problemática ou punir o cancelado? E essa punição, quando transformada em violência física ou simbólica, é válida? 

Um exemplo notório e atual acerca da temática pode ser observado no reality show da Rede Globo de televisão, o Big Brother Brasil edição 21 (BBB 21). Uma das participantes mais polêmicas, a rapper e compositora Karol Conká, saiu do programa com o maior índice de rejeição da história (99,17% dos votos); reflexo de suas atitudes dentro da casa, pautada por uma arrogância desmedida, intolerância contra a opinião alheia as suas, desumanização e violência psicológica contra outro participante em específico, além de fomentar e protagonizar brigas com todos os integrantes do reality.   

Ainda dentro da casa a cantora passou pelo processo de cancelamento, perdendo contratos de trabalho, patrocinadores, shows, além de receber ameaças de morte e linchamento físico – contra ela e seus familiares. No dia de sua saída, a emissora precisou organizar um esquema especial para zelar pela segurança da participante. 

Durante sua participação no programa, Conká cometeu atitudes e possíveis crimes que deve responder e se desculpar perante a sociedade. Se necessário e dentro dos parâmetros da legislação, deverá responder judicialmente pelos seus atos. Os usuários da rede também podem exercer suas liberdades de expressão e questionar a cantora, deixar de acompanhar seus trabalhos e projetos e, assim, diminuir sua influência nas redes sociais. Mas, ameaças de morte e linchamento físico não é um caminho a ser seguido. Responder violência com mais violência não resolve o problema, além de ser um ato criminoso. 

Isto posto, pensemos, leitores: qual o limite do cancelamento digital? Até que ponto podemos cancelar algo ou alguém? Realmente temos esse direito ou dever? E o cancelado, tem direito a reabilitação ou deve ser isolado da sociedade? Qual o verdadeiro propósito de cancelar alguém? 

A epígrafe do início do texto, não coincidentemente, é um verso da música “É o Poder”, da karol Conká. Nele, a rapper faz uma crítica aos julgamentos que acontecem em rede o ao crescimento de pessoas aderindo a esse movimento. Será que Conká já estava prevendo seu futuro? E será que ela não deveria voltar-se a sua própria composição e fazer uma autocrítica acerca da sua postura enquanto “canceladora” dentro do reality?   

Destarte, acredito que o propósito de um cancelamento deve ser a resolução do problema e a tentativa de reabilitar o cancelado. De que adianta apontarmos um erro que nos fere e nos incomoda sem traçarmos estratégias para a resolução da problemática? Cancelar por cancelar não tem efeitos a longo prazo, é meramente uma pena de morte digital que pode, inclusive, ser esquecida rapidamente. Mais importante que apontar o dedo é cancelar(a)dor das vítimas, definitivamente. 

Cleyton Brandão é graduando da Licenciatura em Pedagogia (UFBA);  Graduando em Jornalismo (UNIFACS). Integrante do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica (PIBIC CNPq). Tem suas áreas de pesquisa concentradas em Violência Virtual, Cyberbullying, Relações Étnico - raciais, estudo da Intolerância às religiões de matriz africana no Brasil, relações de Gênero com ênfase no estudo de mulheres negras, Comunicação, Sociedade, Memes e Fake News.

Classificação Indicativa: Livre

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