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7 de Setembro

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Bnews - Divulgação

Publicado em 06/09/2021, às 04h59   Penildon Silva Filho


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Dentro de poucas horas teremos a comemoração da Independência do Brasil, em 7 de setembro. Não será como em outros anos um congraçamento dos brasileiros, mas uma arena de disputa insuflada pelo atual governo federal, que promete levar às últimas consequências a ruptura institucional contra o STF e o Congresso Nacional, caso esse último não se dobre aos seus desígnios. Para refletirmos sobre esse momento em que o próprio mandatário mais poderoso do Estado se coloca numa marcha de golpismo, é preciso lembrar o discurso do depuatado Ulysses Guimarães, quando da promulgação da Constituição brasileira, em 5 de outubro de 1988. Disse Ulysses, num discurso de mais de 10 minutos, o seguinte trecho:

“A Nação nos mandou executar um serviço. Nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa ao admitir a reforma. Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria. Conhecemos o caminho maldito. Rasgar a Constituição, trancar as portas do Parlamento, garrotear a liberdade, mandar os patriotas para a cadeia, o exílio e o cemitério. Quando após tantos anos de lutas e sacrifícios promulgamos o Estatuto do Homem da Liberdade e da Democracia bradamos por imposição de sua honra. Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo. Amaldiçoamos a tirania aonde quer que ela desgrace homens e nações. Principalmente na América Latina.” (leia completo em: https://www.camara.leg.br/radio/programas/277285-integra-do-discurso-presidente-da-assembleia-nacional-constituinte-dr-ulysses-guimaraes-10-23/ )

É preciso observar o “grande jogo”, a “grande moldura” das ações políticas para não ficarmos na superficialidade e fragilidade dos rompantes irascíveis do presidente. O processo de escalada do conflito, de intimidação das instituições, de estímulo à sublevação das Forças Armadas e das polícias nos estados (em atitude claramente golpista), de ataques ao sistema eleitoral e de mobilização da uma base real e virtual pelas fakenews, contando com generoso apoio de segmentos do empresariado, essa gama de iniciativas e ações tem um propósito: esconder o desastre social, sanitário e econômico em que o Brasil se instalou e que não dá sinais de conseguir sair. E dar continuidade ao desmonte do Estado do Bem Estar Social preconizado na nossa Constituição.

A fome e a miséria voltaram a crescer fortemente a partir do governo Temer, depois de um período em que sua diminuição expressiva havia tirado o Brasil do rol de países com fome endêmica segundo a FAO/ONU. O Brasil deixou o chamado Mapa da Fome em 2014 com o amplo alcance do programa Bolsa Família, segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), mas desde então piorou seus índices. E a situação se agravou com a política econômica de “austeridade fiscal” de Paulo Guedes e com a pandemia que não contou com políticas públicas para compensar a diminuição da atividade econômica. "Eram 10,3 milhões de pessoas em IA [insegurança alimentar] grave em 2018, passando para 19,1 milhões, em 2020. Portanto, neste período, foram cerca de nove milhões de brasileiros(as) a mais que passaram a ter, no seu cotidiano, a experiência da fome", afirma a pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN). Segundo a pesquisa, 112 milhões de brasileiros sofrem algum grau de insegurança alimentar, ou seja, não tem a garantia de alimentação regular diariamente (saiba mais em: https://pesquisassan.net.br/ )

O desemprego já estava alto em 2019, em quase 14%, quando a reforma trabalhista, que precarizou as relações de trabalho e retirou direitos dos trabalhadores, ao lado da emenda constitucional 95, que congelou os investimentos públicos por 20 anos, já tinham demonstrado sua ineficácia para gerar empregos e mais atividade econômica e sua eficácia em garantir os lucros dos bancos, mesmo em momentos de recessão e pandemia. No momento atual, além do crescimento do desemprego, houve um aumento do número de “desalentados”, as pessoas em idade produtiva, mas que deixaram de buscar emprego e não aparecem na estatística do desemprego. No Brasil temos hoje 6 milhões de desalentados, além dos 14,3 milhões de desempregados.

Não há perspectiva de melhora dos indicadores sociais e econômicos para o conjunto da população, mas como o governo atual continua a defender a pauta das privatizações, do corte de recursos para as políticas sociais, a liberação da cobrança de juros no mercado e se dedicando a retirar direitos trabalhistas e previdenciários, os mais ricos estão aumentando sua renda e a desigualdade tem crescido expressivamente. A popularidade do atual governo está baixa e continua a diminuir, então a forma que o mesmo tem de tentar polarizar na política e ainda manter um leque de aliados visando a sua continuidade política é através da política/estratégia do caos e da destruição das instituições.

Caso o atual presidente não logre êxito em aplicar um “autogolpe”, desejo manifestado diversas vezes, que vem contando com a deliberada falta de posicionamento das instituições que deveriam defender a democracia, há ainda outro jogo se desenrolando: criar um clima de instabilidade, confronto e de ruptura institucional para justificar um golpe de parte das Forças Armadas e das polícias para supostamente restabelecer a ordem, mesmo que retirando o atual presidente do poder. Das duas formas a instabilidade serve aos interesses golpistas, e não está excluída a possibilidade de ser criada uma via para a sucessão presidencial que envolva segmentos militares (que pelas Constituição não deveriam participar de política partidária ou institucional) com grupos políticos civis interessados em evitar a volta de um governo de centro-esquerda. 

A reação dos empresários aos arroubos golpistas é pequena, tímida, quase protocolar, pois o grande empresariado aplaude o desastre social que é a política econômica de Paulo Guedes. É interessante observar como muito da crítica feita ao golpismo do atual governo ou de seus aliados, que podem usar da instabilidade provocada para assumir diretamente o poder sem o intermédio do atual presidente, se restringe ao plano das relações políticas. Mas os mesmos perfilam argumentos em louvor às reformas neoliberais. Reformas essas que desde 2016 vem destruindo o tecido social da Nação e desconfigurando a Constituição. 

A defesa da Democracia, como doutor Ulysses muito bem fez em seu discurso de promulgação da Constituição, deve ser contra as ditaduras, contra a ruptura institucional e também a favor dos direitos sociais, econômicos e culturais dos cidadãos. Em outra parte do discurso, ele afirma que “Hoje. 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou. A Constituição mudou na sua elaboração, mudou na definição dos Poderes. Mudou restaurando a federação, mudou quando quer mudar o homem cidadão. E só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa. Num país de 30 milhões, 401 mil analfabetos, afrontosos 25 por cento da população, cabe advertir a cidadania começa com o alfabeto. Chegamos, esperamos a Constituição como um vigia espera a aurora.”

A Democracia tem valor quando ela garante as liberdades individuais e políticas, entretanto ele deve se materializar em cidadania, inclusão social, serviços públicos e gratuitos de Saúde, Educação, Assistência Social, Previdência Social digna, políticas de habitação, de transporte, de promoção de empregos, de Cultura. Uma Democracia liberal, apenas formal, que garanta os direitos de liberdade de expressão e de participação não será completa enquanto não garantir as condições materiais para o pleno exercício da cidadania. Num país onde a maior parte da população passa fome em algum momento, não podemos afirmar que já se consolidou uma Democracia substantiva.

Inspiremo-nos nas palavras do “Senhor Constituinte” Ulysses Guimarães, que sintetizam bem os movimentos sociais que construíram a redemocratização do país num caminho tão bonito que unia a liberdade política com a igualdade social, e apoiados pela fraternidade que deve reger a convivência na diversidade. Não aceitemos as ações dos traidores da pátria que procuram destruir a ainda iniciante experiência democrática no Brasil. Que as instituições que devem defender a Democracia sejam mais firmes, e que a superação dessa fase de instabilidade venha acompanhada de um processo de inclusão social. Afinal, uma verdadeira Democracia substantiva não pode frustrar as esperanças de melhora de vida da maioria da população.

Penilson é professor da UFBA e doutor em educação

Classificação Indicativa: Livre

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