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De 2014 a 2024, Brasil viveu a década perdida da polarização

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Bruno Soller é estrategista eleitoral  |   Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 11/05/2024, às 12h47   Bruno Soller*



Dez anos, quatro presidentes, aumento exponencial da polarização e um período perdido do ponto de vista econômico. O Brasil completa, em 2024, uma década desde a reeleição de Dilma Rousseff e passou por um turbilhão de mudanças políticas, crises, acirramento de ânimos e muito pouca mobilidade social da sua população. A vida do brasileiro estagnou e a sociedade parece anestesiada com tantas decepções. Agarrar-se a um polo político parece ser uma defesa na tentativa de pelo menos mostrar que o outro lado é mais prejudicial. O fato é que a população acabou por se contentar em escolher o menos pior e, isso, para um país é uma falência de perspectivas.

As pesquisas de opinião que mostravam o motivo do voto nos últimos desafiantes ao Palácio do Planalto apresentam essa situação. Em pesquisa Datafolha, datada de outubro de 2022, na véspera do segundo turno, 1/5 do eleitorado que votava em Lula, o fazia declaradamente apenas para tirar Bolsonaro da Presidência da República. Um levantamento da Quaest, datado também do período eleitoral, mostrava que 35% dos brasileiros tinham medo da volta do PT ao poder e, por isso, preservavam o voto em Bolsonaro. Uma eleição contaminada por sensações negativas e dominada pela lógica de derrotar o inimigo.

Entre retrações e tímidos crescimentos do PIB, o Brasil cresceu, de verdade, pouco mais que 3% em uma década inteira. Os dois primeiros anos do segundo mandato de Dilma Rousseff inauguraram uma fase de queda do PIB de quase 7%. Temer, ao assumir, conseguiu remediar a situação e o Brasil, em 2 anos, teve ligeiro crescimento acima de 1% (1,3% em 2017 e 1,1% em 2018). Bolsonaro enfrentou uma pandemia que fez derrubar o PIB em 4,1%, em 2020. Em 2021, conseguiu uma recuperação, com crescimento de 4,3%, mas que, no acumulado, virou jogo de soma zero. Desde então, o Brasil, no final de Bolsonaro e início de Lula, vem experimentando tímidos aumentos, que ainda são muito insuficientes para mudar realidades.

Além da questão econômica, os quocientes sociais são muito preocupantes. Eleito com a esperança de um choque na realidade da segurança pública, após um final de governo Temer com intervenção federal no Rio de Janeiro, com o Exército guerreando contra as facções criminosas, Bolsonaro não conseguiu fazer o Brasil sair do hall dos países mais violentos do mundo. Acabados os seus quatro anos de governo, o legado para a segurança foi nulo. Relatório divulgado pelas Nações Unidas, na transição de governos Bolsonaro-Lula, mostra que o Brasil foi responsável por 10,4% de todos os homicídios ocorridos no mundo. Em mortes per capita, o País ocupa a vergonhosa décima primeira colocação mundial, tendo números quatro vezes maiores que a média global.

Outro ponto essencial para a construção do futuro da nação, o ensino público apresentou pioras preocupantes na corrente década. Um estudo realizado pelo Todos pela Educação, trouxe à tona um aumento significativo do analfabetismo de crianças de 6 e 7 anos. Os dados de 2022 apontaram que 41%, quase metade das crianças nessa faixa etária, ainda não sabiam ler nem escrever. As sequelas da pandemia, com a falta de aulas presenciais e fechamento de escolas, ajudou sobremaneira esse perigoso impulsionamento. A crise econômica também é um fator que promove grande parte da evasão escolar. Na busca por se conseguir rendimentos, jovens abandonam os estudos e se imergem na informalidade, na tentativa de conseguirem manter o mínimo em suas casas. Pesquisa coordenada pelo IBGE mostra que 40% dos adolescentes que abandonam os estudos o fazem por necessidade de buscar trabalho.

Os dados de queda de desemprego coadunam justamente com o aumento gigantesco do número de pessoas na informalidade. São dados frios, que parecem uma conquista, mas que só expõem uma nova realidade do mundo do trabalho. No Norte e Nordeste brasileiros quase 60% da população, de acordo com o IBGE, já vive na informalidade. A vinda dos aplicativos de carona e entrega, além do comércio eletrônico, mexeram com a forma como a população se remunera e garante sua renda. O emprego formal está cada vez mais escasso e depende de mão de obra qualificada para ocupação.

O subdesenvolvimento traz consigo o retorno de problemas que pareciam sanados. A falta de vacinação e educação profilática faz com que três em cada dez crianças brasileiras não sejam vacinadas contra doenças potencialmente fatais. As condições infraestruturais degradantes em boa parte do País e de falta saneamento básico são vetores que aumentam ainda mais esses problemas. Rubéola, sarampo, caxumba e malária, que pareciam quase extintas, voltaram a assombrar os brasileiros nessa fatídica década. Falta de médicos, de medicamentos, filas para exames, consultas e um SUS depauperado são reclamações constantes na vida dos que mais precisam do serviço público de saúde.

Nesse cenário de pioras sensíveis e que impactam no dia a dia do brasileiro, chama a atenção a falta de alguma liderança que consiga romper essa polarização entre dois lados que não conseguiram melhorar a vida das pessoas. O lulismo, ainda vivendo de um período de bonança do início do século, tem gerado insatisfação naqueles que votaram com a expectativa de uma volta àquele universo. A realidade imposta mostra um poder de compra diminuto, com aumento no preço dos alimentos e de serviços básicos, e pouquíssima mudança do que se viu no governo anterior. Bolsonaristas usando a bengala da covid-19 ainda têm um ponto a favor na argumentação, dizendo que o ex-presidente governou sob situação adversa. O fato é que a ação dele na própria pandemia foi rejeitada pelos brasileiros, que viram despreparo e pouca efetividade na resolução dos problemas e foi um dos motivadores que o fez perder a reeleição.

Movimentos contra a polarização aparecem vez ou outra, coordenados por políticos brasileiros. A falta de um nome que represente esse rompimento é o maior dos problemas. Sempre que algum dos nomes surge, há uma tentativa de enquadra-lo em um dos dois nichos. Luciano Huck, apresentador da Rede Globo, ensaiou candidatura à presidência, em 2018 e 2022, e chegou a ter bons índices nas pesquisas de opinião, atingindo dois dígitos quando seu nome era testado. Surpreendentemente, nas últimas semanas, o global lançou um manifesto em forma de vídeo, falando sobre ser “isentão” na política, um termo que foi criado para desqualificar aqueles que não se identificam nem com Lula, nem com Bolsonaro, parecendo querer incorporar esse movimento em torno de sua figura.

Em pesquisas qualitativas feitas pelo Brasil é nítido como a polarização contaminou a maneira de pensar do brasileiro. Quando instados a falar um nome que gostariam de ver como presidente da República, não aparecem alternativas. Falta alguém que represente verdadeiramente esse sentimento. Um nome que consiga encarnar a identidade popular do lulismo e alguns valores do bolsonarismo. Um isentão que não seja só em negação aos polos, mas que se comprometa com pautas reais e de desejo da sociedade. Para virar a página de uma polarização que pouco tem contribuído com o País, as ideias de uma terceira via precisam de um corpo ideal para transmiti-las. Sem isso, a eleição de 2026, caminhará novamente para um embate de um lulismo envelhecido e um bolsonarismo genérico, com a impossibilidade de Bolsonaro se candidatar, ampliando um período medíocre na história do Brasil.

*Bruno Soller é estrategista eleitoral. Especializado em pesquisas de opinião pública, é graduado em Relações Internacionais pela PUC-SP, com especialização em Comunicação Política pela George Washington University. Trabalhou no governo federal, Câmara dos Deputados e Comissão Europeia.

Artigo originalmente publicado no Estadão

Classificação Indicativa: Livre

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