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Morte de oito em favela do Rio vira 'fantasma' para atuação do Exército

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Ação de policiais e soldados completa três meses ainda sem esclarecimento  |   Bnews - Divulgação Folhapress

Publicado em 22/02/2018, às 07h12   Folhapress


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Um padeiro de 19 anos voltava de moto da casa da namorada numa noite de sexta-feira, quando, no trajeto, cruzou com um amigo, que subiu na garupa. Eles seguiram por uma estrada à beira do Complexo do Salgueiro, conjunto de favelas em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio, com casas de um lado e mato do outro. Ouviram quando forças de segurança entravam na favela, mas seguiram adiante, detectando o som ainda longe.

De repente, o padeiro foi alvejado com tiros nas mãos e na coxa. Seu amigo foi atingido no rosto. Os dois caíram da moto e ficaram à beira da estrada até serem socorridos por moradores. "Os tiros vieram da mata", diz o jovem, um dos três sobreviventes do episódio, hoje chamado no Rio de a chacina do Salgueiro, em novembro de 2017. Por medo de retaliação, o jovem e sua mãe deixaram a favela.

Os outros sobreviventes daquela noite e o laudo pericial corroboram esse depoimento, dizem a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio.

Quem viu a cena diz que os atiradores usavam capacete e tinham o rosto coberto. Só que tanto o Exército como a Polícia Civil, que faziam uma operação em conjunto no complexo, afirmam que seus homens não estavam naquela mata.

Aquilo que era oficialmente uma operação contra o tráfico da Core (Coordenadoria de Recursos Especiais), unidade de elite da Polícia Civil, com apoio do Exército, acabou com sete corpos espalhados ao longo de uma estrada. Ao todo, 11 pessoas foram baleadas. Oito morreram, sendo a oitava semanas depois.

A investigação já dura mais de três meses e até agora não apontou os responsáveis pelas mortes, transformando o caso numa espécie de fantasma da atuação do Exército no Rio a Força atua no reforço da segurança do Estado desde setembro passado e agora terá papel ainda mais intenso com a intervenção.

No caso do Salgueiro, a apuração do Exército fica em mãos federais, via Ministério Público Militar, e da polícia, pela própria corporação e pelo Ministério Público.

O caso enfrenta obstáculos, diz a Promotoria, em parte por causa disso. Os 17 soldados do Exército que participaram da ação não deram depoimentos à polícia, como fizeram os agentes da Core, nem aos promotores, por isso as autoridades estaduais têm em mãos apenas parte da história.

Já o Ministério Público Militar disse que aguarda diligências solicitadas ao Ministério Público do Rio e ao Instituto de Criminalística. Segundo o órgão, as armas levadas pelos soldados naquele dia estão acauteladas desde as mortes.

Em outubro passado, o presidente Michel Temer sancionou lei que transferiu para a Justiça Militar o julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados contra civis por militares quando em atividade operacional.

MISTÉRIO
Tudo o que se sabe, segundo a Delegacia de Homicídios de Niterói, que investiga o caso, é que, naquela noite, a Core pretendia fazer ação para "confirmar informações".

Como o Complexo do Salgueiro é perigoso, a unidade pediu o apoio do Exército. Entraram com três blindados, dois do Exército e um da Core. Ao final da madrugada, 11 pessoas haviam sido atingidas, todas na estrada das Palmeiras. Segundo a Defensoria Pública, que teve acesso aos laudos de necropsia, todos foram baleados pelas costas.

Em nota conjunta, Exército e polícia disseram inicialmente que houve "resistência armada". O delegado Marcus Amin, da Delegacia de Homicídios de Niterói, disse que as forças foram recebidas a tiros e só revidaram. Depois, a versão oficial mudou. Segundo a delegacia, agentes da Core disseram que já encontraram os corpos no chão. Quatro deles tinham passagem pela polícia, segundo a Polícia Civil.

Segundo o Comando Militar do Leste, soldados disseram o mesmo em depoimento prestado internamente. Os projéteis encontrados no local não batem com as armas da Core, segundo a polícia. Ainda não se sabe se batem com as do Exército, já que o Ministério Público Militar ainda não fez a análise comparativa, segundo o órgão, por demora da parte do Estado.

ABANDONO
A Folha conversou com a mãe de uma das vítimas. Ela pediu para não ser identificada e disse que seu filho trabalhava com reciclagem.

"Quando cheguei lá [na estrada das Palmeiras]", disse a mãe, "vi o corpo do meu filho estendido. Eles [a polícia] não me deixaram chegar perto, mas eu vi", afirmou.

O complexo de cinco favelas, com ao menos 15 mil moradores, é considerado um dos pontos mais perigosos do RJ. Fica à beira da estrada Niterói-Manilha (BR-101), a poucos quilômetros de um posto da Polícia Rodoviária Federal e de um Batalhão da PM.

Diferentes vias que dão acesso ao complexo foram fechadas pelo tráfico com barricadas. Nas margens circulam homens com fuzis. Quartel-general do Comando Vermelho em São Gonçalo, circulam por lá cerca de 300 fuzis, segundo a polícia. É esconderijo de chefes da facção.

Com 1 milhão de habitantes, São Gonçalo cresceu de forma desordenada. "Ao contrário do que acontece em outros lugares violentos, como o Complexo da Maré, por exemplo, no Salgueiro não há ONGs, então não há visibilidade das pessoas sobre o que acontece lá dentro", diz Doriam Borges, do Laboratório de Análise da Violência da Uerj (Universidade do Estado do RJ).

Um estudo coordenado por ele e ainda não publicado descreve o complexo: "Os entrevistados ressaltaram que a favela é um dos lugares mais violentos de São Gonçalo, mas as estatísticas criminais não indicam altas taxas de homicídio. Segundo um policial civil, as vítimas de homicídio são jogadas no curral para serem comidas pelos porcos, no mangue para serem comidos pelos jacarés ou na Baía de Guanabara para serem levados pela maré" .

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