Cultura

Família Veloso conta ao BNews histórias sobre a tradição do prato-e-faca como instrumento do samba de roda

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Após live de Caetano Veloso, instrumento foi tratado com desconhecimento nas redes sociais; veja relatos de músicos sobre a importância do prato-e-faca  |   Bnews - Divulgação Reprodução/Redes Sociais

Publicado em 15/08/2020, às 07h30   Yasmin Garrido


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“Nesse prato não se come. Esse prato é pra sambar”. Essa frase foi gravada em um prato entregue como lembrança dos 90 anos de Dona Edith, percussionista e cantora de Santo Amaro (da Purificação). Nascida Edith Oliveira Nogueira, o prato pediu licença aos sobrenomes para fazer daquela cidadã do Recôncavo Baiano a imortal Dona Edith do Prato.

A reportagem do BNews mergulhou em diversas histórias que remontam à tradição, não só de Dona Edith, como do próprio instrumento, que teve a primeira aparição documentada e ligada ao samba ainda em janeiro de 1864, na edição 18 do Jornal O Alabama.

Em um ofício enviado ao subdelegado de Sant’Anna é possível ler um pedido para que “cessem, de uma vez, as quotidianas desordens que há em alguns becos da rua do Castanheda, provenientes dos continuados sambas que há todas as noites ali, (...) privando os pacíficos moradores de poderem dormir, pelos toques de pratos e pandeiros”.

Ao descrever o samba de roda, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) afirmou que os instrumentos eram tocados predominantemente por homens, enquanto às mulheres cabia a dança. A exceção é, justamente, o prato-e-faca, o que, segundo a descrição do órgão, tem origem no fato de a cozinha ser o ambiente onde estavam as mulheres.

Os utensílios europeus que equipavam as cozinhas foram transformados em instrumentos, utilizados, na Bahia, no samba de roda e, mais tarde, levados a outros estados, como o Rio de Janeiro, ocupando um papel importante também na formação do samba carioca. Mas, isso é do tempo d’O Alabama, o que faz do prato-e-faca, na atualidade, um instrumento secular e tradicional à cultura brasileira.

Quase dois séculos após o registro d’O Alabama, já em 1888, o prato-e-faca foi personagem do escritor Raul da Pompeia, na tentativa de descrever a Festa da Penha a um jornal de Juiz de Fora, em Minas Gerais. O livro “Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro”, de Roberto Moura, traz a íntegra do texto de Pompeia.

“Depois da refeição, vêm as danças e os cantos. Um delírio de sambas e fados, modinhas portuguesas, tiranas do Norte. Uma viola chocalha o compasso, um pandeiro acompanha, geme a sanfona, um negro esfrega uma faca no fundo do prato, e sorri negríssimo, um sorriso rasgado de dentes brancos e de ventura bestial. A roda fecha”.

Prato gravado
Com a chegada da indústria fonográfica no Brasil, nas duas primeiras décadas do século XX, o responsável por levar o prato-e-faca para as gravações de samba, em 1928, foi João da Baiana, cantor, compositor, passista e instrumentista carioca.

Em outubro de 1931, ao lado de Pixinguinha e Donga, ele formou o Grupo da Guarda Velha, só com música instrumental. E, claro, o prato-e-faca foi destaque nas gravações do partido alto “Há! Hu! Lahô!” e da chula “Patrão Prenda Seu Gado”.

Mas, já quando o Grupo da Guarda Velha utilizava a tecnologia para gravar discos, Dona Edith, que ainda era menina, certamente, tocava o prato-e-faca nas ruas e festas de Santo Amaro. O BNews conversou com a educadora, escritora, compositora e cordelista baiana Mabel Velloso e ouviu encantadoras histórias sobre a arte de tocar prato.

Caboclo
Foi no quintal da casa de Dona Edith, em Santo Amaro, que Mabel Velloso, ainda criança, ficava espiando as rodas de samba que aconteciam após os festejos da umbanda. “Me lembro eu pequena assistindo àquelas festas e o povo tocando prato. Edith ficava tocando. Tinha um caboclo que ela recebia e, quando ele ia embora, já nas rodas, é que ela pegava o prato”, contou ao BNews.

Mas, a primeira lembrança de Dona Mabel com o prato-e-faca é com a mãe, Dona Canô. “Minha mãe tocava. Não sei se vou achar algum vídeo dela agora para te enviar, mas ela tocava muito bem”, disse. Quando questionada se já havia tentado tocar prato, Mabel não pensou duas vezes: “Para a música eu não sei nada. Os dois irmãos músicos são Caetano e Bethânia”.

No documentário Fevereiros (2017), de Marcio Debellian, é possível ver Dona Canô tocando prato e sambando ao lado da filha Maria Bethânia. 

O prato-e-faca tocado por Dona Canô não marcou só Mabel, mas toda a família. A cantora e compositora Belô Velloso dividiu com o BNews que a primeira lembrança que tem do prato também vem do quintal da avó, em Santo Amaro. “Eu já nasci ouvindo esse som, que é uma referência de infância”.

Ela disse que, antes mesmo de ir ao quintal de Dona Edith do Prato, a quem ela carinhosamente chama de ‘minha tia Edith’, porque não tinha idade para frequentar as rodas de samba e as festas de umbanda, já ouvia Dona Canô tocar o prato-e-faca. “Ela tocava sambando. Era uma coisa linda. Eu tenho uma relação afetiva muito grande e de primeira infância com esse instrumento. Foi desde de sempre. Eu não conheço a vida sem essa sonoridade, que é uma referência para mim até hoje”, disse Belô.

'Voz de Santo Amaro'
Belô Velloso contou à reportagem uma lembrança, entre tantas, muito especial que envolve o prato-e-faca: a gravação de ‘How beautiful could a being be’, que na tradução para o português significa ‘Quão belo pode ser o ser’. Música de Moreno Veloso, Caetano incluiu a canção no álbum livro, de 1997, que ele descreveu como “uma roda de samba de uma frase só”.

Para a gravação, Belô contou que o backing vocal seria feito por Nara Gil e Paula Morelenbaum, mas que, de última hora, Moreno ligou e a convidou para juntar-se a elas. “Eu quero uma pessoa de Santo Amaro, ele disse. E eu amei, porque fugi de minha gravação para fazer o backing de How Beautiful”.

À época, Belô estava produzindo o álbum “Um Segundo”, que, segundo ela, “é o disco mais pop” da carreira e não tem o prato-e-faca. “Por isso eu fugi e fui lá com as meninas gravar. Eu fui chamada por ser uma cantora santamarense. Foi muito emblemático para mim. Gostei muito”, lembrou.

'Vou me embora pro sertão'
Bem antes de o prato-e-faca em ‘How Beautiful Could a Being Be’, Caetano Veloso já tinha deixado a sonoridade fazer parte de outras canções. E, como não poderia ser diferente, três anos depois de Dona Edith subir ao palco pela primeira vez, ao lado de Roberto Mendes, ela e o prato fizeram possível a gravação de “Viola, meu bem”, música de abertura do álbum “Araçá Azul” (1973), de  Caetano.

Foi a partir daí que Dona Edith passou a acompanhar o afilhado Caetano nas turnês, tendo tocado o prato-e-faca ao lado de Martinho da Vila, Jair Rodrigues, Alcione e tantos outros nomes da música brasileira. Dez anos depois de Araçá Azul, ela gravou a chula ‘Filosofia Pura, canção do disco Ciclo (1983), de Maria Bethânia, que teve a participação de Gal Costa. 

Ainda com Bethânia, em 1999 Dona Edith se apresentou no Teatro Castro Alves, em Salvador, no Festival Mundial de Percussão. E, em 2003, os irmãos Caetano e Bethânia voltaram a gravar com Dona Edith do Prato, no primeiro álbum da santanaremense, o “Vozes da Purificação”, lançado pela Biscoito Fino, quando ela tocava o prato-e-faca entoando um coro ao lado de outras oito cantoras.

'Mata a fome do samba'
Diante da sonoridade do prato-e-faca, Mabel Velloso confessou ao BNews que não se arriscou a tocar o instrumento, porque tinha receio de não fazê-lo com perfeição. Ela contou que em Santo Amaro, no Acupe e em São Brás, que são localidades na cidade, são muitas as pessoas que sabem tocar o prato. Para quem nunca teve a oportunidade de conhecer a tradição do prato, Mabel mandou um recado.

“Aprenda a sambar com o prato tocando. O prato não é só para a gente comer. Tem também o samba que nasce no prato. Mata a fome do saber. Mata a fome do samba. Mata a fome da harmonia. É uma coisa muito bonita saber tocar prato”. E recomendou ao BNews que ouvisse o percussionista e baterista Marcelo Costa, quem, segundo ela, poderia contar muitas histórias sobre e com o instrumento. Assim foi feito.

'Brincar de ouvir música'
(Peço licença agora para escrever em primeira pessoa por algumas linhas). Um dia antes de Mabel Velloso mencionar Marcelo Costa, eu [a repórter que vos escreve] havia visto uma foto no Instagram dele: era um prato assinado por Dona Edith e uma faca. No mesmo dia, já à noite, ele participou de uma live na rede social com Jorge Velloso e falou coisas sobre música que me tocaram profundamente.

Dali em diante, já tinha decidido tentar extrair dele algumas histórias sobre o prato-e-faca e a tradição do instrumento para o samba de roda. Veio a recomendação de Mabel Velloso e eu corri para fazer o contato. Já o tinha visto em shows, festas e até no Samba do Trabalhador, um tradicional grupo que se apresenta no Clube Renascença, no Rio de Janeiro, fundado pelo cantor e compositor Moacyr Luz.

Ao BNews, Marcelo Costa disse que, desde a primeira infância, tinha como brincadeira favorita ‘ouvir música’. “Tudo isso começou como um interesse genuíno pela música. Eu nem sei como isso ocorre com uma criança. Eu gostava de música e sabia os discos de cor antes de saber ler. Não sei como explicar um interesse espontâneo pela música”, disse.

Já pela percussão, ele acredita que toda criança começa o contato com o ritmo por meio de um batuque. “É mais fácil de tirar som. Ninguém pega um violão e sai tocando, fazendo barulho. Quando você pega um instrumento de percussão, sai batendo. Eu tinha um jeito com a percussão que eu não sei de onde veio. Tudo tinha uma espontaneidade e uma naturalidade muito grande na minha vida e fui me encaminhando para ser baterista e percussionista”.

Ritmista
Antes de conhecer o prato-e-faca, mas já apaixonado por ritmos, Marcelo, que é filho de uma baiana de Jequié, sempre viajava de férias para Salvador. Em um dos passeios, entrou no Mercado Modelo, em 1965, com o pai e foi presentado com diversos instrumentos de percussão, do berimbau ao atabaque com couro de cobra. “Eu continuava brincando de percussão e hoje sou um cara muito ligado a ritmos”, disse.

Mas, o primeiro contato de Marcelo Costa com o prato-e-faca foi por meio do disco Araçá Azul, de Caetano Veloso, quando o instrumento despertou no jovem carioca algo que ele, novamente, não soube descrever. “O disco é de 1973 e eu tinha 13 anos. É um disco, para muitas pessoas, estranho. E eu me lembro que tem aquelas inserções de samba de roda. Eu adorei aquilo profundamente. De novo com aquele mesmo interesse que eu tinha quando criança. Ainda estava começando a pré-adolescência, mas aquilo me fascinou”.

Aos 21 anos, o músico iniciou os trabalhos ao lado de Caetano Veloso, tendo participado das gravações dos discos ‘Cores Nomes’ e ‘Uns’. “Depois ele me convidou para participar do Velô e tem muito essa presença da Bahia. Foram 18 anos com Caetano e mais 20 anos com a Bethânia. Então, esse negócio da Bahia foi seguindo em minha vida. Eu tenho uma ligação biológica da minha mãe, uma ligação de começar a ir à Bahia desde menino, e uma ligação que vem do meu amor pelo ritmo”, disse o músico que atualmente toca também com outras baianas, como Jussara Silveira e Illy.

Beatle
O fascínio pelos ritmos baianos sempre foi algo presente na vida de Marcelo, até que, após um show de Bethânia em Salvador, ele acabou sendo apresentado a Dona Edith do Prato e decidiu pedir a ela um autógrafo.

“Não foi a Dona Edith quem me presenteou com o prato. Ao contrário. Eu tocava com a Bethânia e tocava muito prato. Um dia ela estava em um show, acho que em Salvador. Para mim, encontrar com a Dona Edith era como se eu estivesse vendo um Beatle. Eu pedi para ela assinar meu prato, como um autógrafo de um ídolo. É isso o que ela, para mim, na música, na percussão e no ritmo”, contou ao BNews.

Rolling Stone
Mas, com tantos anos de tradição, o prato-e-faca ainda não é de conhecimento amplo, ficando restrito apenas aos músicos, às rodas de samba e aos apreciadores da cultura nordestina. Em live realizada por Caetano Veloso pelo Globoplay, em 7 de agosto, quando comemorou 78 anos tocando e cantando ao lado dos filhos, o primogênito Moreno Veloso sambou e tocou o instrumento secular justamente em “How Beautiful Could a Being Be”.

O que deveria ser mais uma das vezes em que ele tocou prato-e-faca, coisa que faz em praticamente todas as apresentações - e, segundo Mabel Velloso, “faz lindamente” -, acabou se tornando uma polêmica nas redes sociais, após a revista de música Rolling Stone se referir ao instrumento como um improviso de quarentena.

De certo que existe, sim, um privilégio para aqueles que já ouviram o som de um prato tocado com faca, mas, diante da cena de Moreno tocando o instrumento em uma live de alcance internacional, à menor dúvida quanto ao que era aquilo, em 1 minuto e 2 segundos, apenas, o Google devolveria 90,7 milhões de resultados sobre a busca “prato-e-faca”.

Sem entrar no mérito da coisa, mas em razão da polêmica, o BNews viu a necessidade de contar as histórias sobre o prato-e-faca, desde à primeira aparição documentada até os relatos daqueles que têm no instrumento memórias de uma vida. Em vídeo publicado nas redes sociais, o próprio Caetano Veloso se manifestou sobre o episódio, relembrando toda a tradição do prato no samba.

“Prato-e-faca no samba de roda na Bahia é um instrumento tradicional. Mas, não é só na Bahia. Tem João da Baiana. Aqui no Rio ainda tem gente que toca em área de samba. Se você falar com qualquer pessoa do mundo do samba e que sabe das coisas, prato e faca é comum. Agora, uma revista de música pensar que prato e faca foi inventado na hora, porque Moreno não tinha instrumento, isso é uma maluquice. É uma ignorância inacreditável", disse o cantor.

‘Copo meio cheio’
O ritmista Marcelo Costa e a cantora Belô Velloso, no entanto, apesar de terem lamentado a abordagem da revista e das redes sociais diante do prato-e-faca, conseguiram enxergar na polêmica um lado bom: a oportunidade de difundir ainda mais a tradição do instrumento. “Que bom que mais gente ficou sabendo disso. Mesmo que seja por um caminho estranho, acabou tendo uma repercussão e muita gente soube, se informou disso”, afirmou o músico.

“No mundo do samba, todos sabem o que é o prato-e-faca. Mas, esse é um mundo específico. Então, eu acho que foi bom mais pessoas ficarem sabendo. Eu não acho que esse episódio tenha de seguir para uma coisa ruim. Teve a imprudência da revista de música, que foi um castigo para o mundo superficial, mas que levou às pessoas a ficarem sabendo do prato e da faca”, acrescentou.

Além de Edith do Prato, a Bahia também é terra de Dona Aurinda do Prato, que nasceu e vive até hoje na Ilha de Itaparica. Sambadeira de respeito, a mestra foi contemplada, em 2018, com o Prêmio Culturas Populares, realizado pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério da Cidadania.

Além delas, outras tantos sambistas fazem da arte de tocar prato um legado para o samba de roda. Se interesse pela cultura do Brasil. Pesquise. Se informe. Viva Dona Edith do Prato. Viva Mestra Aurinda. Viva o samba de roda. E VIVA A TRADIÇÃO!

Clique aqui e ouça o podcast com as entrevistas e as histórias do prato-e-faca.

Classificação Indicativa: Livre

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