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Mesmo com tantos sistemas de proteção ao investidor, como ninguém viu o rombo de R$ 20 bilhões na Americanas?

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O anúncio acarretou na queda de braço entre acionistas da varejista e bancos  |   Bnews - Divulgação Divulgação

Publicado em 22/01/2023, às 12h53   Redação BNews


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A Americanas entrou em recuperação judicial após a descoberta de um rombo de R$ 20 bilhões nos balanços de 2022 e de anos anteriores. O anúncio das “inconsistências contábeis” acarretou na queda de braço entre acionistas da varejista e bancos.

Por conta das restrições de crédito, fornecedores apreensivos e queda vertiginosa no valor das ações, a saída foi pedir proteção à Justiça contra os credores. Segundo a empresa, são R$ 43 bilhões em dívidas e 16.300 credores.

O que muita gente ainda se pergunta é como um rombo financeiro desse tamanho, maior que o patrimônio líquido de R$ 14,7 bilhões da empresa, passou despercebido em uma companhia de capital aberto, fiscalizada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), integrante do Novo Mercado da Bolsa e do Índice de Sustentabilidade da B3 (que só admitem empresas com alto padrão de governança), que tinha demonstrações financeiras auditadas por multinacionais e crédito bilionário em grandes bancos, além do aval de notas de crédito positivas de agências?

Nenhum dos sistemas de proteção ao investidor conseguiu identificar o problema antes que a empresa viesse a público?

De acordo com reportagem de O Globo, especialistas afirmam que erros contábeis podem ser difíceis de identificar, embora algumas das partes envolvidas tivesse mais chance de se dar conta do que ocorria do que outras. Até para CVM, que tem a incumbência de regular e fiscalizar o mercado de capitais, ficaria difícil enxergar.

"A CVM tem que garantir o bom funcionamento do mercado. Uma análise de conteúdo individual é muito mais difícil de acontecer antes de ser apurada uma falha. Quando acontece, a CVM vai punir", diz Gustavo Flausino Coelho, sócio do Bastilho Coelho Advogados.

Segundo o consultor Renato Chaves, professor da FGV Direito, o órgão fiscalizador deveria ser mais firme nas investigações e nas punições. "Tudo acaba com a assinatura de um termo de compromisso. Para delitos graves, não deveria ser permitido".

O Banco Safra, que está entre os credores da varejista, ressaltou que já havia provisionado metade de sua exposição à Americanas, de R$ 2,4 bilhões, no exercício de 2022 e que fez um aumento de capital de R$ 7,4 bilhões em novembro. Os bancos Itaú e Bradesco preferiram não comentar.

Ainda de acordo com os analistas, a responsabilidade das auditorias será cobrada porque era delas a atribuição de se aprofundar nos números da empresa.

Segundo Chavez e Coelho, o fato de a Americanas integrar o Novo Mercado e seguir os padrões mais rígidos de governança não blindam o investidor de revezes como este.

Sócio do escritório VH Advogados e professor da Faculdade de Direito do Mackenzie, Ronaldo Vasconcellos afirma que é provável que os credores busquem a responsabilização dos acionistas de referência da Americanas— os bilionários Jorge Paulo Lemman, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira —, criadores da 3G e que detêm 31,13% do capital da varejista.

"É quase certo que haverá pedidos para que esses acionistas paguem pelos prejuízos, até na pessoa física", diz Vasconcellos.

Por meio de nota enviada ao jornal, a CVM afirma que “constituiu uma força-tarefa” para apurar o caso e está usando convênios com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal. Diz ainda que mantém acordo de intercâmbio de informações com o Tribunal de Contas da União (TCU).

Já a B3 disse que pode prever regras de exclusão do Novo Mercado. Procuradas, Americanas, KPMG e PwC não responderam.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) tem o objetivo de fiscalizar, normatizar, disciplinar e desenvolver o mercado de capitais no Brasil. A partir da crise das Americanas, sete processos foram abertos para investigar os erros nas demonstrações financeiras da empresa, mas só depois que a própria veio a público informar um rombo de pelo menos R$ 20 bilhões.

A reportagem de O Globo cita ainda que o Ministério Público pediu que o Tribunal de Contas da União (TCU) investigue se houve omissão por parte do órgão regulador. Para Renato Chaves, professor da FGV Direito, é difícil identificar falhas na fiscalização do mercado. "A CVM cumpre seu papel. Pede explicações, dá dez dias para respostas e, daqui a um ano, vamos ver os envolvidos assinarem termo de compromisso", critica o consultor.

Já na visão de Gustavo Coelho, da FGV, é difícil a CVM perceber equívocos dessa natureza. "O objetivo dela é criar um ambiente adequado no mercado, mas não é imune a falhas".

A CVM destacou que “constituiu uma força-tarefa” para apurar o caso e que “está fazendo uso dos convênios e da cooperação que possui junto à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal”. A Comissão também afirmou que está em constante diálogo com a Advocacia-Geral da União e mantém acordo de troca de informações com o TCU.

Mas como já é de conhecimento de todos, as inconsistências financeiras das Americanas não se restringem ao ano de 2022. De acordo com a PwC e KPMG, duas das consultorias mais respeitadas do mundo, fizeram auditorias e avalizaram as contas da varejista sem apontá-las. Escritórios de advocacia que preparam processos no exterior para reparação já citaram que pretendem incluir auditores e acionistas.

Na opinião de especialistas, houve falha nas auditorias. "Há fraudes difíceis de identificar, escondidas no meio de contratos de pequenos valores. Não entram na régua de avaliação de auditores. Mas, nesse caso, foi grande e ao longo do tempo", disse Renato Chaves, professor da FGV Direito.

O advogado Gustavo Flausino Coelho ressalta que nesses momentos, a independência das consultorias é sempre questionada. "Há poucas no mercado e predileção pelas de mais prestígio. Podem ser responsabilizadas".

O sócio da Sampaio Ferraz Advogados, Bruno Furiati, diz que um problema é a quantidade de aferições feitas só com base em declarações da administração. As auditorias precisam analisar contratos como o de risco sacado. "No caso das Americanas, não pediram? Se pediram, não bateram com o balanço?"

A enorme dívida de R$ 43 bilhões declarada pela Americanas à Justiça tem entre os credores muitos bancos, evidenciando que a rede não tinha problemas para obter crédito, mesmo junto a tradicionais instituições financeiras. Mas como esses bancos não viram os erros nos balanços?.

Para alguns analistas, os bancos se fiaram nas demonstrações financeiras auditadas. "São contas sólidas, aprovadas em assembleia, com margem baixa de lucro, mas muita penetração, faturamento bastante elevado com tendência de perenidade. As notas das agências de rating são outra chancela", diz Gustavo Coelho.

Na conversa com o jornal, o consultor Renato Chaves lembra que os bancos estavam sendo pagos em dia.

O consultor da Performa Partners, André Pimentel afirma que a reputação dos sócios da 3G Capital foi outra chancela para as instituições.

À reportagem, o Banco Safra ressaltou que já havia provisionado metade de sua exposição à Americanas, de R$ 2,4 bilhões, no exercício de 2022. O banco fez um aumento de capital de R$ 7,4 bilhões em novembro, o que reduz a proporção da exposição em seu patrimônio líquido. Um assessor de outro banco credor diz que ninguém sabia do problema contábil da empresa, que era listada no Novo Mercado e tinha balanços auditados sem apontamentos.

Um erro contábil de R$ 20 bilhões foi revelada numa companhia que faz parte de um grupo seleto da Bolsa de Valores, a B3. Até quinta-feira, a Americanas estava no Novo Mercado, que exige regras mais rígidas de governança: classe única da ações (ON), com direito a voto, conselho com membros independentes e alto nível de transparência. A varejista também integrava o Índice de Sustentabilidade, outro selo de boas práticas da B3. Após a recuperação judicial, foi retirada de todos os índices.

"O Novo Mercado aumenta a barra de cobrança, exige governança mais elevada, e a empresa se torna mais interessante para investir. Mas não necessariamente esses selos blindam essas ações", diz o advogado Gustavo Coelho.

O Novo Mercado traz mais segurança e conforto ao investidor, “mas não é uma garantia”, concorda Renato Chaves:

"Ele ainda precisa evoluir. A relação com o investidor da Americanas é muito ruim. O modelo de negócios merece ser questionado".

Na última terça, o CEO da B3, Gilson Finkelsztain, afirmou que evitar prejuízos ao investidor deve mobilizar todos os agentes do mercado. Disse que a B3 poderá avaliar a criação de regras de exclusão do Novo Mercado: “É um debate que sozinho não evita prejuízo ao investidor, porque funciona após o surgimento do problema. O mais relevante é buscarmos medidas mais eficientes de evitar que isso ocorra”.

A reportagem de O Globo segue explicando que as principais agências de rating do mundo, que avaliam risco de crédito, só rebaixaram a nota da Americanas para C (risco elevado) e D ( risco de default, calote) depois que os papéis da companhia já tinham caído 77% na Bolsa. Até então, a varejista exibia nota B das agências.

As avaliadoras olham as demonstrações financeiras, o mercado, a expansão da empresa. Mas críticos ao modelo dizem que é preciso que o rating vire de fato uma referência da saúde financeira da companhia. A avaliação, segundo Coelho, passa mais por monitorar, a partir de fatos do mercado, as circunstâncias da economia para o setor e a empresa.

"Cria-se a obrigação de ter um rating, que pode não valer nada. Analisam com base nas demonstrações, não entram na companhia para verificar nada. Acreditam naquilo que tem aval dos auditores. Não há regulação específica", critica Renato Chaves.

Na crise global de 2008, as agências de classificação de risco foram criticadas e responsabilizadas por avalizar com nota máxima papéis sem lastro, que viraram pó em pouco tempo.

Procuradas, as agências não comentaram.

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