Especial

Bike no altar • histórias de fiéis ao ciclismo em Santa Teresinha

Publicado em 10/08/2015, às 21h00   Leo Barsan


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No topo da Serra da Jiboia, ciclista contempla Santa Teresinha (Foto: Pietro Baddini / Divulgação)

No meio dos biomas Caatinga e Mata Atlântica, no Recôncavo Sul da Bahia, tem um lugar com nome de santa. Entre paredões rochosos e vegetação de contrastes, um cenário charmoso, distante 202 quilômetros de Salvador. Os paralelepípedos, a velha locomotiva e a discreta placa anunciam Santa Teresinha.

A pacata cidade com pouco mais de 10,5 mil habitantes esbanja peculiaridades de municípios do interior do Brasil. Por exemplo, a devoção à santa que dá nome ao local. Lá, além da reverência ao sagrado, os moradores veneram os pedais. A bicicleta foi entronizada em Santa Teresinha, ao ponto de tornar-se símbolo da última eleição municipal, em 2012, e guiar um dos cidadãos ao altar: a prefeitura.

Moradores veneram a bicicleta e meio de transporte é símbolo de eleição municipal (Foto: Robson Oliveira / Divulgação)

Numa disputa a la Davi e Golias, o então funcionário público Ailton de Oliveira Santana, 41 anos, venceu o pleito com 98% dos votos válidos graças à magrela. É que corre pela cidade a história de que o ex-gestor, na época candidato à reeleição, teria menosprezado o futuro rival por causa do seu meio de locomoção.
“O prefeito anterior disse que jamais perderia a eleição porque ele tinha um carrão 4x4 e Ailton uma bike. Ele perguntava: “como é que o cara da bicicleta vai ganhar pra mim?” Quando o povo soube desse desaforo, deu a resposta nas urnas. Todo mundo pedala aqui e comprou a ofensa”, conta o professor de História, Ivan Lima.
O funcionário público, então lotado no departamento de Recursos Humanos da prefeitura, ficou conhecido na cidade, e nas circunvizinhanças, como “Ailton da Bicicleta”. Ele afirma nunca ter cogitado ocupar um cargo político. “Nem pensava nisso, mas meu nome começou a surgir pela falta de concorrência e o povo queria mudar a gestão. Não tinha carro e fazia tudo de bicicleta. O nome pegou”, relata o agora prefeito que, ao invés de carreatas durante a campanha, fez bicicletadas, segundo ele, com mais de mil participantes.
Ailton da Bicicleta (D) e o campeão do Suba 100K, Alexandre Arthur (Foto: Ivan Lima)
Não parou por aí. Entre os dias 1º e 2 de agosto, Santa Teresinha largou na frente e sediou o primeiro campeonato de Mountain Bike Suba 100K, na Bahia. Conhecida como capital baiana dos bons ventos e do voo livre por causa dos inselbergs – formações rochosas –, como a Serra da Jiboia, cuja altimetria é de 2,4 mil metros, a cidade recebeu 400 ciclistas de todo o país para o Challenger de MTB. “A gente tem alavancado o ciclismo. A cidade é ideal porque tem muitas trilhas entre a Caatinga e a Mata Atlântica. É o encontro do desafio com a beleza”, gaba-se Ailton.
Ailton da Bicicleta é devoto de Santa Teresinha e do ciclismo (Fotos: Leo Barsan)

Sobrenome Bicicleta

A paixão do prefeito pelos pedais surgiu quando ele ainda era criança. “Sempre pratiquei ciclismo e futebol. Só não fiz muito gol de bicicleta”, diz, aos risos. A cidade aguarda, com ansiedade, a aprovação de recursos do governo estadual para a construção de uma ciclovia de seis quilômetros, apesar da harmônica convivência entre bicicletas, motocicletas e automóveis.

Uma das testemunhas da boa relação entre os meios de transporte é o carpinteiro Dio Lagobeiro, 55. Todos os dias ele pedala 14 quilômetros e carrega as ferramentas na garupa da “Chupa-Cabra”. “Botei o apelido da minha bicicleta assim. Tenho ela há 20 anos. Na lógica, é o meu carrinho e a minha moto ao mesmo tempo”, afirma. Será que ele pensa em parar de pedalar? “Não, não, não! A bicicleta come o cara aos pouquinhos porque emagrece, mas não paro de jeito nenhum”, garante Lagobeiro, na maior pose e sem perder o estilo.

“Sou conhecido aqui por causa da minha magrela também. Quando alguém vê a Chupa-Cabra já sabe que estou por perto. Agora mesmo vim tirar uma porta ruim e botar outra ruim”, conta ele, às gargalhadas. “Brinquei, mas pedalar é saúde pura. Já fiz 54km sem parar e não vou parar mesmo”, arremata.

Dio Lagobeiro e Dorinha usam suas bicicletas para trabalhar (Fotos: Leo Barsan)

A bike é sinônimo de felicidade para Maria das Dores Miranda, a Dorinha, 48. “Sou a ‘Mulher da Bicicretinha (sic)’”, define-se. “Passo o dia pedalando e vendo bijuterias, roupas, produtos e rifas. Quer tirar uma não? Só R$10. Aceito débito”, diverte-se, para acrescentar: “Quem sabe um dia compro um carrinho, mas só penso em Bicicreta (sic)”.

Se a magrela enfraquece, quem resolve o problema é Raimundo da... Bicicleta, 51. Dono da oficina mecânica da cidade, ele perdeu as contas de quantas bikes já consertou. “Quando o pessoal faz trilha passa por muita lama e buraco, e acaba empenando um câmbio, uma jante. A gente resolve. Só não faço pintura”, ressalta ele, que vai mandar “dar um grau” na sua paixão de 1973. “Estou com ela há mais de 30 anos. Vou reformar, trocar os aros e o sistema de freio. Só não largo dela”, avisa.

Inseparável da bicicleta também é o lavrador Gualbino Honorato, 67. “Já fiz muitas coisas e ainda estou fazendo com minha magrela. Vou para o serviço e pedalo há mais de 45 anos. Sou viúvo e levava minha mulher na garupa. Era comigo mesmo. Eu, eu mesmo e as crianças!”, diz o saudosista e sorridente pai de 13 filhos. “Todos pedalam. Empresto a minha bicicleta, às vezes cai a corrente, mas a gente conserta”, comenta, na porta de casa.

Raimundo da Bicicleta e Gualbino têm as magrlas há mais de 30 anos (Fotos: Leo Barsan)

Corrente pelo cicloturismo

Num extremo, suor no rosto por causa da Caatinga. No outro, frio em meio ao maior remanescente de Mata Atlântica do Recôncavo Sul baiano: a Serra da Jiboia. O clima agradável e a biodiversidade de Santa Teresinha compõem as ilhas terrestres capazes de atrair os devotos do ciclismo. A topografia da região foi um dos fatores determinantes para que a Federação Baiana de Ciclismo realizasse o evento inédito na cidade histórica.

“Como a região é muito montanhosa, tem aquelas pedras bonitas, tivemos a ideia de incorporar o ciclismo de estrada lá. O Suba 100K é realizado nos Estados Unidos e trouxemos esse modelo para a Bahia. Quem participou adorou muito. Não tivemos acidentes nem incidentes, apesar do relevo muito alto. Já estão pedindo as inscrições para 2016. Santa Teresinha abençoou!”, comemora Orlando Schimidt, presidente da FBC. “Vamos mapear toda a cidade e aperfeiçoar as questões de logística. O evento foi muito bem organizado”, ressalta.

Cidade sediou evento inédito de Mountain Bike (Fotos: Robson Oliveira)

Primeiro colocado no Suba 100K, categoria Solo, o atleta Alexandre Arthur, 28, fez o percurso em 4h42. “Poderia ter feito em menos, mas tive problemas com a lama e a corrente. Ainda tive que empurrar a bicicleta na subida da Serra da Jiboia. Todos fizeram a mesma coisa. Optei em correr por dentro de uma valeta”, revela. Ele, que pratica ciclismo há cinco anos, já tem mais de 150 premiações. “Sou campeão baiano e estou na 16ª colocação no ranking nacional. Sou apaixonado”, orgulha-se.
Alexandre Arthur treina quatro horas por dia no Vale do Capão, Chapada Diamantina. “Encarar o desafio em Santa Teresinha foi o mesmo que estar em casa. Aqui tem todos os tipos de terreno, menos asfalto. O lugar do evento é lindo demais! Nos próximos campeonatos vou defender meu título”, dispara o atleta.

Santa Teresinha está de braços abertos para o ciclismo (Fotos: Robson Oliveira)

O prefeito Ailton da Bicicleta não competiu, mas contou com a ajuda dos amigos para chegar ao topo da Serra da Jiboia. “Quem aguenta? Fui subir, mas boiei. Ciclismo é um dos esportes mais completos para a saúde do ser humano. É qualidade de vida e não polui o meio ambiente. Vou continuar praticando, mas sem competir nas trilhas”, evidencia. A reportagem vai encarar um passeio ciclístico no próximo 15 de novembro. “Até lá é se preparar”, recomendam os peregrinos dos pedais. Os desafios do ciclismo em Santa Teresinha, alertam especialistas, são de vencer rezando.

Classificação Indicativa: Livre

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