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Linchamento

Publicado em 01/10/2010, às 16h13   Rômulo Moreira




* Rômulo Moreira

É assustador como a cada dia se multiplicam nos noticiários de nossa imprensa as informações acerca de um fenômeno social que se vem tornando perigosamente contumaz em nossa sociedade, alastrando-se por todo o Brasil, tendo o Estado da Bahia, indiscutivelmente, a primazia triste de estar ocupando lugar de destaque: falamos do linchamento.

A mídia, cotidianamente, traz-nos a visão da brutal e covarde prática do linchamento, consumado por um sem número de pessoas transformadas, por instantes, em verdadeiras “bestas humanas”. O que resta, via de regra, é um corpo dilacerado pela brutalidade selvagem do grupo agressor.

Ainda se ocultam em nossa memória as cenas chocantes trazidas pelos noticiários televisivos, tais como as que ocorreram há alguns anos quando uma presidiária de 35 anos foi agredida por outras detentas no interior do presídio onde se encontrava, sob a acusação de homicídio. Nada obstante já sujeita ao sistema penal, foi julgada e condenada à morte por outras presidiárias; à época, uma revista semanal assim se reportou ao fato:

“A presa foi assassinada a ponta-pés, golpes de ferro elétrico, teve seus olhos perfurados a unha e foi escalpelada como uma vítima de índios comanches num filme de faroeste – seus cabelos foram arrancados à força junto com pedaços do couro cabeludo”

Meses depois fato semelhante ocorreu na cidade de Matupá, em Mato Grosso, oportunidade em que três homens acusados de roubo foram espancados até a morte por uma multidão, sendo, ao final, queimados vivos como registrou um impassível cinegrafista amador da cidade. O detalhe: entre os responsáveis pela chacina estavam, possivelmente, um próspero comerciante local e um vereador do mesmo Município.

Em março do ano de 1994 uma outra, mas igualmente feroz multidão, invadiu a Delegacia de Polícia da cidade de Salto do Lontra, no Paraná, matando um médico de 44 anos e mais dois presos, todos recolhidos sob a suspeita, sequer formalizada, de participação na morte de uma enfermeira. Tudo, mais uma vez, filtrado por uma câmera. Aliás, nesta região do sul do País, segundo o veículo jornalístico já referido, até aquela data oito linchamentos tinham ocorrido nos últimos onze anos.

Veja a seguinte notícia publicada no Jornal A Tarde, edição do dia 11 de fevereiro de 2008:

“Em pouco mais de 24 horas, e a menos de 200 metros, um terceiro caso de linchamento foi registrado no bairro do Parque São Cristovão, bairro da periferia na zona norte de Salvador. Nos três casos os motivos foram casos de roubo e a ausência de policiamento nas ruas. Na manhã deste domingo, 10, por volta das 11h20, um homem, aparentando menos de 30 anos, de identidade ignorada, foi perseguido por um grupo de mais de 30 pessoas, que o acusavam de ter roubado uma casa e levado um aparelho de televisão.O acusado (sic) foi alcançado pela multidão enfurecida quando tentava subir as escadarias do Caminho 40, que liga o bairro de Mussurunga à Estrada Velha do Aeroporto, e ali mesmo, apesar dos gritos de socorro, recebeu várias pedradas e pauladas, morrendo no local. No dia anterior,  por volta das 6h30, dois outros acusados de roubos às residências do Parque São Cristovão, E. O. S., de 18 anos, e M. N. S. I., de 20 anos, também foram linchados por mais de 30 pessoas. Em ambos os casos, a Lei do Silêncio impera entre os moradores e quem dá algumas informações evita qualquer identificação.”

No Estado do Rio de Janeiro o IBOPE realizou uma pesquisa no ano de 1980, constatando-se que 44% dos entrevistados apoiavam o linchamento, sob a simplória alegação de que “se a justiça não age, o povo tem de agir”.

Ainda conforme elementos indicados na obra de Hélio Bicudo, entre “setembro de 1979 a fevereiro de 1982, a imprensa divulgou 82 ocorrências no Brasil: 38 linchamentos com vítimas fatais e 44 tentativas. Anote-se que na década anterior (1969/1979), noticiaram-se, só no Rio de Janeiro, 41 casos de linchamento”.

No Estado da Bahia, principalmente na Capital, os linchamentos transformaram-se em notícias corriqueiras das páginas policiais, infensos até a maiores comoções.

Segundo o jornal O Globo  doze pessoas, nove das quais em Salvador, “já foram espancadas até a morte este ano na Bahia”, informando, ainda, que “há três anos o número de linchamentos vem aumentando”, sendo que “em alguns casos as vítimas eram suspeitas de pequenos furtos”.

O fenômeno continua repetindo-se e de forma mais constante, bastando uma aligeirada pesquisa nas páginas policiais dos nossos jornais diários. A cifra impressiona...

Feitas estas primeiras considerações, muito mais ilustrativas, diríamos que o linchamento envolve três aspectos principais: a crueldade, a covardia e a inutilidade de sua prática.

É cruel porque se mata lentamente, minando as forças do agredido com golpes sucessivos e nos diversos órgãos do corpo, utilizando-se dos mais diferentes instrumentos, arruinando a vítima paulatinamente e deixando-lhe sentir vagarosamente a dor e a morte. Por vezes, o espetáculo aterrador finda-se com a cremação do que sobrou da matéria, como uma láurea aos vencedores. Nada mais pungente, portanto.

Já a covardia se traduz no fato de que se reúnem vários homens e atacam um, dois ou, no máximo, três, atitude absolutamente pusilânime. A falta de coragem salta aos olhos quando atentamos para o fato de que o linchamento é sempre precedido pela reunião dos executores, nunca se agindo isoladamente. Não que preguemos, em absoluto, intrepidez no agir ou bravura em fazer “justiça com as próprias mãos”, posto que tal procedimento, solitariamente ou em grupo, é sempre detestável, além de defeso pelo nosso ordenamento jurídico, salvante casos especialíssimos, permitidos pela lei, entre os quais não se encontra a execução sumária de indivíduos indefesos.

Assim, é lógico que numericamente inferiorizada a vítima do linchamento chance nenhuma possui de defesa fato este, inclusive, também qualificador do homicídio cometido, ao lado da torpeza e da crueldade.

Pensamos, outrossim, que o linchamento é um exercício inócuo, tendo em vista que apenas na aparência solucionaria a questão da violência urbana. A idéia de que se matando um indivíduo, sumariamente ou não, caminha-se para a solução da delinqüência, é tacanho, falacioso e está superado (é como imaginar, inocentemente, que a transposição das águas do Velho Chico resolveria o problema da seca no Nordeste).

A questão, para nós, deve ser encarada sob um outro aspecto, haja vista que consideramos tremendamente nocivo em um estado democrático de direito que a sociedade dissemine o jus puniendi como um direito posto à disposição dos cidadãos quando, na verdade, ele pertence tão-somente ao Estado. Estes fatos apenas geram uma descrença progressiva nos poderes constituídos (o que, de mais a mais, já ocorre) a ensejar um perigoso processo de “cada um por si”, aumentando, sem dúvidas, o grau de violência no País. Assim, visto também por esse prisma, infrutuoso é o linchamento.

Na presente análise há algo que não pode ser olvidado: a causa da contumácia dos linchamentos. Temos para nós, a priori, que o aumento da violência, aliado à falta de confiança da população na punição dos infratores, motiva atos dessa natureza. A crença de que a polícia não pode dar cabo da violência (o que, diga-se de passagem, é verdade, em decorrência do estado de miséria em que vive a nossa população) nem, ao menos, reduzi-la a níveis suportáveis (esta sim, circunstância perfeitamente factível diante dos mecanismos postos à disposição da organização estatal), acarreta a revolta e o desejo de dizer o Direito motu proprio, sem aguardar que o faça o Estado.

Nesse ponto resulta exatamente o maior erro de quem participa de um linchamento (e de quem o aplaude ou o aceita): o mesmo órgão (o grupo agressor) acusa, defende, julga e executa, tal como na Inquisição, sem que seja dado ao “réu”, por si próprio ou por terceiro, ensejo em defender-se, expurgando-se do Estado a possibilidade de aplicar o devido processo legal (art. 5º, LIV da Constituição Federal), princípio, aliás, existente desde a Constituição Americana de 1791 (due process of law) e segundo o qual é vedado o julgamento de um cidadão sem que lhe seja assegurado um processo legalmente constituído, garantindo-se, absoluta e inarredavelmente, o seu direito à mais ampla e irrestrita defesa com todos os seus corolários (contraditório, duplo grau de jurisdição, não auto-incriminação, etc.). Sem o devido processo legal qualquer julgamento será execrável; todo processo que diga respeito à liberdade, ao patrimônio ou à vida de uma pessoa deve observá-lo, dissociando-se claramente acusador, defensor e julgador (sistema acusatório), sob pena de não se legitimar constitucionalmente.

A socióloga Jacqueline Sinhoretto define os linchamentos como “práticas coletivas de execução sumária de pessoas consideradas criminosas. Sua característica diferenciadora de outros tipos de execução sumária é o seu caráter de ação única, ou seja, o grupo linchador se forma em torno de uma vítima, ou grupos de vítimas, e após a ação, se dissolve. Por isso, diz-se dos linchamentos que são ações espontâneas e sem prévia organização.” Em excelente monografia, ela informa, inclusive, que “a literatura internacional a respeito de linchamentos é basicamente de origem norte-americana e está referida ao período das últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX, momento em que ocorreram muitos linchamentos nos Estados Unidos, especialmente vitimando negros. Por estar referida a este contexto específico, essa literatura remete o leitor muito mais às diferenças entre os fenômenos brasileiro e americano, do que às suas semelhanças.”

Fragoso já afirmava que “o Estado detém o monopólio do magistério punitivo, mesmo quando a acusação é promovida pelo ofendido (ação penal privada)”, o que significa que o indivíduo, ainda que o bem jurídico atingido seja próprio, não pode, por si só, querer dizer o Direito, sob pena de ingerência indevida nas coisas específicas do Estado.

No linchamento, ao invés, contraria-se este princípio jurídico, posto que, tal como o concebeu o norte-americano Willian Lynch (1742-1820), linchar é execução sumária, sem prerrogativas de alguma espécie para o indivíduo.

Retorna-se, então, aos primórdios da Roma Antiga (753 a.C.), onde “o transgressor era considerado execrável ou maldito (sacer esto), sujeito à vingança dos deuses ou de qualquer pessoa, que poderia matá-lo impunemente”, como nos lembra Fragoso.

Relembra Tornaghi que o “homo sacer  era aquele que, por haver praticado ato nefasto era amaldiçoado. Quase todos os autores sustentam que o sacer homo perdia a proteção do Direito, era abandonado á própria sorte e podia até ser morto por qualquer pessoa.” Segundo o mestre, na Alemanha dava-se o mesmo, pois “o profanador, privado da paz (friedensloss) embrenhava-se pelas florestas para escapar ao castigo. Quando aparecia esquálido, barbado, tinha o aspecto de um lobo (wolf), donde o nome de wolfmensch (homem lobo ou lobisomem). Alguns estudiosos sustentam que a denominação provém do fato de o criminoso ser rebaixado à condição de animal que, por ser daninho, devia ser morto (Brunner-Schwerin, História del Derecho Germânico, p. 22).” E, finalizando, compara o inesquecível processualista brasileiro: “Por mais estranho que pareça esse costume, dele não difere o linchamento americano.”    

* Rômulo Moreira é procurador-geral adjunto e professor de Direito Processual da Unifacs

Classificação Indicativa: Livre

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