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Medo do amanhã: moradores de Ibiquera relatam incertezas com possibilidade de cidade sumir do mapa da Bahia

Diego Vieira/BNews
PEC prevê extinção de municípios com menos de 5 mil habitantes e com arrecadação própria menor que 10% da receita total   |   Bnews - Divulgação Diego Vieira/BNews

Publicado em 27/11/2019, às 18h59   Diego Vieira


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A sombra de uma pequena árvore serve como convite para um grupo de idosos que se reúne com frequência durante as manhãs para falar sobre variados assuntos. Quem passa de longe pode até arriscar o tema da conversa e engana-se quem pensa que eles estão debatendo política ou futebol. Nos últimos dias, a principal pauta que permeia o círculo de amigos é a possível extinção da cidade onde vivem. 

Localizada a cerca de 380 quilômetros de Salvador, a pacata Ibiquera pode sumir do mapa. Pelo menos é o que sugere a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Pacto Federativo, apresentada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) no início deste mês.

A ideia prevê que municípios com menos de 5 mil habitantes e arrecadação própria menor que 10% da receita total sejam incorporados a cidades vizinhas. Esse é o caso de Ibiquera que possui 4.043 habitantes, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, a cidade tem a receita total no valor de R$ 15.628.980,43. Dessa quantia, o município arrecada R$ 344.873,06, o que representa um total de apenas 2,21% do montante, ou seja, porcentagem inferior a 10%.

De acordo com o Ministério da Economia, há atualmente 1.254 municípios no país dentro desses parâmetros. Na Bahia, a lista é composta por dez cidades.

Um dos integrantes do grupo que discutia, justamente este assunto, o aposentado Valdemar Jesus classifica como “inacreditável” a proposta. Morador de Ibiquera desde quando o local pertencia a Itaberaba, a cerca de 100 km, ele teme a destruição da história do município que completou 61 anos de emancipação política em agosto deste ano.

“Chega a ser inacreditável que queiram acabar com a nossa cidade. Mesmo não tendo essa quantidade de habitantes, nós somos gente e ajudamos a construir a história do nosso município. Querem desmoralizar o nosso território e espero em Deus que isso não aconteça.  Qual a vantagem disso?” questiona o aposentado, sendo apoiado pelos amigos ao redor.  

A poucos passos daquela roda de conversa, o comerciante Edilson Santos também demonstrou insatisfação com a ideia do presidente Bolsonaro. Proprietário de uma das poucas mercearias da localidade, ele acredita que as dificuldades no acesso à saúde, por exemplo, só iriam aumentar caso o município seja integrado a outro.

“É um absurdo tremendo depois de mais de 60 anos, Ibiquera voltar a ser distrito de outra cidade. A gente aqui com prefeito tem momentos que passamos por dificuldades, imagine se voltarmos a ser distrito. Vamos ter que se deslocar mais de 100 quilômetros para Itaberaba, por exemplo, para tratar da saúde. Os prefeitos de cidades maiores não estão dando conta de cuidar da cidade dele, imagine quando outro município se agrupar a ela”.

Acostumado com a tranquilidade, o comerciante diz que não pensa em sair do local o qual ele define como “o melhor do mundo”. “Não troco Ibiquera por lugar nenhum. Eu já estou adaptado a minha terra. Aqui só falta chuva, mas tirando isso não tem lugar melhor no mundo para se viver”, declara.

Mas também não poderia ser diferente já que Ibiquera possui elementos de sobra de uma cidade típica do interior. Incrustada entre serras, o local exibe belas paisagens verdes e praças que se juntam ao silêncio, esporadicamente quebrado pelo barulho de crianças brincando em uma das 38 ruas existentes no município. 

E foi em uma dessas ruas que a reportagem do BNews encontrou a moradora Anailde Francisca. Entre uma conversa e outra com uma de suas vizinhas, ela conta que tem recorrido a orações para que o projeto do governo não avance.

“Não concordo com essa loucura. Deixa como está. Temos um prefeito que nos representa, nos dá um suporte. Imagine isso aqui sem prefeito? Vamos passar necessidades. Muita gente vai querer ir embora. Tenho pedido a Deus todos os dias que isso não aconteça", afirma.

E por falar no prefeito, ele também partilha da mesma opinião dos munícipes. Ivan Almeida (PP) conta que logo após o anúncio da PEC, foi marcada uma reunião com uma equipe do IBGE para tratar do censo 2020, estudo estatístico que possibilita o recolhimento de informações, como o número de habitantes de cada município. Para o gestor, a proposta não leva em consideração a história de cada lugar.

“Estão pensando apenas na questão econômica e estão esquecendo da questão histórica e cultural de cada cidade. Os moradores da cidade ficaram assustados quando souberam, toda a região também. Amigos enviaram mensagens se solidarizando com a gente. De imediato, eu marquei uma reunião com o pessoal do IBGE porque sabemos que em 2020 virá o Censo mais uma vez, mas estamos confiantes de que isso não vai adiante, até porque sabemos que isso não depende apenas do presidente”, pontua o gestor, que se diz confiante com o novo censo. “Acredito muito que nesse no censo do ano que vem a nossa cidade já tenha um avanço muito maior e significante”, completa.

Ibiquera poderia estar de fora da lista dos dez municípios baianos que podem ser extintos se mantivesse pelo menos o número de cerca de 7 mil habitantes que já chegou a ter, no entanto, segundo o prefeito, muitas pessoas deixaram o local por falta de oportunidades e por limitação ao acesso a direitos básicos, como a saúde.

“Infelizmente as gestões passadas não cuidaram da forma que deveriam cuidar, deixando que as pessoas fossem embora por falta de cuidado. Faltou apoio para a agricultura para que as pessoas pudessem permanecer. Faltou apoio na geração de emprego. Com isso, o comércio começou a fechar as portas. Quando se fecha as portas isso gera o desemprego, gerando o desemprego as pessoas buscam novos caminhos”, ressalta.

A justificativa utilizada pelo prefeito vai ao encontro da história do comerciante Caio Ribeiro. Sem expectativas de emprego, o jovem empreendedor montou uma loja de jogos para garantir uma renda mensal, caminho oposto feito por amigos de Caio que decidiram ir embora de Ibiquera por falta de oportunidades.

“Acho que o governo deve rever isso, ao invés de extinguir o município, poderia investir mais e oferecer mais emprego para a população. Eu vi muitos jovens que estudaram comigo indo embora por falta de oportunidade, então acredito que criando mais oportunidades para o povo, a cidade só tende a crescer cada vez mais”.

Sem trabalho e assistência, Ibiquera também perdeu comunidades rurais inteiras que passaram a integrar municípios vizinhos. Segundo o prefeito, o objetivo agora é repatriar essas localidades e com isso aumentar o número de habitantes.

“A partir do momento em que o gestor deixa de dar assistência, como fazer a estrada, levar a água para essas pessoas que estão lá, cuidar da assistência médica, essas pessoas acabam sendo abraçadas por outro município e neste momento ela passa a fazer parte daquela cidade que está dando apoio a ela. Hoje estamos buscando trazer de volta o nosso povo, dando a devida assistência que merece”.

Por outro lado, com o decorrer dos anos a cidade acabou atraindo novos moradores. É o caso da aposentada Lindaura Maria, de 81 anos. Natural de Mundo Novo, a cerca de 140 quilômetros de Ibiquera, ela afirma que presenciou os avanços significativos no local. 

“Depois que Ibiquera foi emancipada melhorou muita coisa. Acho que deve ficar como está. Nós não somos caranguejos para andar para trás, muito pelo contrário, queremos avançar cada vez mais e ver a nossa cidade evoluir cada dia mais”.

A opinião dela é a mesma do centenário Manoel Souza, um dos moradores mais antigos do local. Sentado em uma cadeira na varanda de casa, é de lá que ele tem acompanhado as mudanças ocorridas na cidade.

“Isso aqui melhorou muito e se voltar a ser distrito só vai piorar as coisas pra gente. Antigamente aqui era governado por Itaberaba. Tudo tínhamos que ir resolver lá. Lutamos tanto para termos a nossa independência e agora querem tirar de nós. Espero muito que isso não aconteça”.

Apesar das melhorias, a arrecadação da cidade não acompanhou as evoluções citadas por dona Lindaura e seu Manoel. Questionado sobre a renda de Ibiquera, o prefeito afirma que o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) ainda é o principal responsável pela quantia que mantém o local. 

"O nosso ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços] ainda é pequeno, mas já foi menor, mas ainda assim continua baixo, em função de que o nosso comércio ainda não se auto sustenta da forma que deveria, então não tem aquela rentabilidade. No entanto, é perceptível que está havendo uma evolução. Vejo isso fazendo um comparativo com os anos passados em relação ao nosso ICMS e as nossas arrecadações”, justifica.

O FPM é uma transferência constitucional da União para os Estados e o Distrito Federal, composto de 22,5% da arrecadação do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). A distribuição dos recursos aos municípios é feita de acordo com o número de habitantes, onde são fixadas faixas populacionais, cabendo a cada uma delas um coeficiente individual.

Para o prefeito, a possível extinção da cidade pode gerar danos à localidade como o crescimento do desemprego, além da perda histórica. “A cidade perde sua identidade histórico-cultural e além disso vai gerar um desemprego muito grande. Eu acho que vai trazer um prejuízo enorme e não vai trazer benefício algum para o país. O prejuízo maior é jogar no lixo a cultura de uma cidade como Ibiquera que tem 61 anos, tem suas peculiaridades e não pode, num estalar de dedos, chegar e dizer que acabou como se fosse um comércio que entrou em falência porque não está vendendo bem”, lamenta.

Para ser aprovada, a PEC exige quórum quase máximo e dois turnos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

No estado, além de Ibiquera outras nove cidades também podem deixar de existir. Confira a lista abaixo:

1. Maetinga - 3161 habitantes
2. Catolândia - 3577 habitantes
3. Lafaiete Coutinho - 3724 habitantes
4. Lajedinho - 3783 habitantes
5. Lajedão - 3955 habitantes
6. Dom Macedo Costa - 4058 habitantes
7. Contendas do Sincorá - 4066 habitantes
8. Aiquara - 4446 habitantes
9. Gavião - 4463 habitantes 

No Brasil, o estado líder em municípios ameaçados é o Rio Grande do Sul, que perderia 46% de suas administrações locais - 229 cidades das 497 existentes, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam). 

História de Ibiquera

Ibiquera era antes terras de fazendeiros e coronéis vindos principalmente das lavras diamantinas. Na agricultura predominava a mamona e a mandioca e na pecuária o gado de corte (símbolos presentes na bandeira do município).

De clima tropical, estação seca e altitude 563 metros, o local possui temperatura média anual de 22°c. Com território desmembrado do município de Itaberaba em 20 de agosto de 1958, faz fronteira ao oeste com o município de Andaraí, leste com Boa vista do Tupim, ao sul com o município de Nova Redenção e ao norte com Lajedinho.

Antes de se chamar Ibiquera, o local era chamado de Olhos D’ Água do Cedro, segundo alguns moradores mais antigos, pelo fato de, na região, prevalecer a abundância da madeira conhecida como Cedro. 

A serra do Cristal e a Gruta da Lapinhas são os lugares visitados pelos moradores, em especial a Gruta, por ser considerada local sagrado e motivo de peregrinação dos devotos – católicos na sua maioria -, vindos de vários locais do estado, uma vez que ela está localizada às margens da BR 242 e de fácil acesso.

O que prevê a PEC do pacto federativo

•    Cria o Conselho Fiscal da República que se reunirá a cada três meses para avaliar a situação fiscal da União, estados e municípios. O conselho será formado pelos presidente da República, Câmara, Senado, Supremo Tribunal Federal (STF), Tribunal de Contas da União (TCU), governadores e prefeitos;

•    Extingue o Plano Plurianual (PPA);

•    Leis e decisões judiciais que criam despesas só terão eficácia quando houver previsão no orçamento;

•    Os benefícios tributários serão reavaliados a cada 4 anos. No âmbito federal eles não poderão ultrapassar 2% do PIB a partir de 2026;

•    A partir de 2026, a União só será fiadora (concederá garantias) a empréstimos de estados e municípios com organismos internacionais, e não mais com bancos;

•    Prevê a transferência de royalties e participações especiais a todos estados e municípios;

•    União fica proibida de socorrer com crédito entes com dificuldades fiscal-financeiras a partir de 2026;

•    Estados e municípios passarão a receber toda a arrecadação de salário-educação e a definir o uso dos recursos;

•    Permite que o gestor administre conjuntamente os gastos mínimos em educação e saúde, podendo compensar um gasto de uma área na outra;

•    Cria o Estado de Emergência Fiscal que vai desindexar despesas obrigatórias e cria mecanismos automáticos de redução de gastos.

Classificação Indicativa: Livre

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