Religião

Ex-freiras acusam padre de abuso sexual e lavagem cerebral

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Segundo grupo, Igreja Católica demora para chegar a desfecho de caso  |   Bnews - Divulgação Reprodução

Publicado em 17/09/2018, às 07h07   Folhapress


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As primeiras denúncias começaram em 2006. Só se falava, então, em “lavagem cerebral” numa comunidade católica na goiana Anápolis, a Arca de Maria. 

Com o tempo vieram as acusações de abuso sexual contra Jean Rogers Rodrigo de Sousa, 44, conhecido como padre Rodrigo Maria. Algumas freiras (as “irmãs”) que estiveram sob sua guarda narram investidas sexuais contra a vontade delas. Alguns atos foram consumados, outros não, dizem.

O assédio seria também virtual: num dos casos, Rodrigo teria começado a se masturbar numa conversa via Skype. 

Ao menos 11 mulheres relataram à Igreja Católica episódios de abuso em várias cidades, o que motivou a abertura de processos canônicos contra o clérigo.

Mas a falta de um desfecho para o caso, 12 anos após a primeira queixa contra a Arca de Maria chegar ao conhecimento do Vaticano, leva o grupo a se perguntar por que tanta demora para punir um padre que, para todos os efeitos, ainda está livre para cooptar outras jovens. 

A justiça eclesiástica prevê, como punição mais grave, demissão do estado clerical (o condenado não exerce mais o sacerdócio) e excomunhão.

Para Flavia Piovesan, professora da PUC especializada em direitos humanos, a Igreja deve notificar um possível crime à Justiça comum quando o que se está em jogo é “o combate à impunidade desta grave violação”.

“De acordo com a Constituição, nenhuma lesão a direito [da vítima] pode ser afastada da apreciação do Judiciário.”

Padre Rodrigo pulou de diocese em diocese e hoje responde ao bispado de Ciudad del Este, no Paraguai. É lá que devem ficar concentrados processos contra o réu, ainda que os eventos tenham se passado em outras cidades.

Em fevereiro, o monsenhor local, Guillermo Steckling, emitiu decreto determinando que, enquanto estiver sub judice, o brasileiro “não exerça o ministério sacerdotal nem vista o hábito clerical”. Rodrigo, que se diz inocente, vêm descumprindo ambas as ordens. 

O padre Fabio Recalde Barúa, porta-voz da diocese paraguaia, confirmou à Folha que o padre está sendo julgado por “desobediência” e “numerosas e graves infrações de leis divinas e canônicas”. 

A Folha conversou com três ex-freiras da fundação de Rodrigo, duas delas que se dizem vítimas dele, e teve acesso a uma série de documentos sobre o caso. Todas as mulheres citadas aqui têm seus nomes trocados a pedido delas. 

Um dos motivos pelo qual, dizem, não recorreram à Justiça comum: o medo de serem identificadas, pois as famílias muitas vezes não têm ideia do que aconteceu com as filhas.

Com Renata foi assim: “O padre chamou [as freiras] para conversar. Uma a uma. Cheguei, ele fechou a porta. Parecia que não estava em si, já veio com uma força muito grande, me jogando no sofá e levantando meu hábito. Não tive coragem de gritar. Tudo em cinco minutos que pareceram uma eternidade”. 

Ele dizia que ia mudar, mas ela desconfiou que isso não aconteceria quando viu, no computador do padre, vídeos de sexo com animais, “de leão a macaco”, e e-mails de meninas de fora da Igreja que “mandavam fotos de calcinha e sutiã”. Rodrigo lhe dizia que era normal: “Excluo sempre”.

Os episódios que narra se passaram entre 2014 e 2015. Certa vez, segundo Renata, os dois se falavam pela internet. “Aí ele baixou [a roupa] e se masturbou, e nisso eu imediatamente desliguei o Skype.” Antes, porém, tirou um print da conversa —a imagem foi anexada aos autos canônicos. 

A Folha escutou um áudio de 2015 em que o padre é confrontado por parentes de uma ex-freira sobre relações que teria mantido com jovens sob sua tutela e sobre uma “foto mostrando o pinto” no Skype. Ele admite “atos indecentes” e contatos online em que “acabei falando coisas indecentes”.

Na conversa, afirma que há meninas que se apaixonam por ele e culpa a “força mais destrutiva do universo, a FMD”, por falhas que lhe são atribuídas. A sigla quer dizer “fúria da mulher desprezada”, ele explica.

Questionado pela reportagem, Rodrigo diz que jamais se relacionou, de forma consentida ou não, com freiras e que não há “áudio algum em que fale isso, a interpretação fica por sua conta”.
Peritos ouvidos pela Folha atestam que a voz do áudio e a de um vídeo do clérigo no YouTube são a mesma.

Renata conta que, assim que expôs a convivas da casa religiosa o que lhe passou, Rodrigo “falou que eu estava ficando doida e que não era para que as outras confiassem em nada do que eu falasse”. Rita diz ter sofrido o mesmo “terrorismo psicológico” com Rodrigo. 

'NÃO DEIXA ELE TE ABRAÇAR'
À sua história: em 2012, aos 18 anos, ela se juntou à Arca de Maria. Adorou o padre que. “Ele nos levava para uma chácara com paintball e tirolesa. Pra gente, era um santo em vida. Se as irmãs mais velhas falassem tipo ‘não deixa ele te abraçar’, batíamos de frente.” 

E não parava no abraço. “Chamava a gente de bebezinho, apertava as bochechas, dava beijinho no rosto. Víamos como amor paterno”, diz. 

Rita o seguiu quando ele foi afastado da presidência da instituição que fundou em 2003. A Folha confirmou na Comarca de Anápolis um procedimento administrativo oficializando sua saída da Arca em 2014 e destacando que o bispo João Wilk lhe destituiu da função clerical no âmbito de sua diocese, a de Anápolis.

Naquele ano, Rodrigo criou uma segunda instituição, a Opus Cordis Mariae, e freiras como Rita se mantiveram fiéis a ele. Certo dia, o clérigo levou ela e outra irmã para “um retiro” em Minas. Cozinharam cuscuz com carne (que Rita salgou demais) antes de ele pedir que as jovens o acompanhassem até o quarto,diz.

Estava tarde, não queria que elas pegassem a estrada de terra uma hora daquelas, teria alegado. Os três na cama, Rita tensa. Primeiro eram abraços, depois “movimentos mais sexualizados”.

Ao virarem noviças, as garotas raspavam o cabelo, então usavam lenço. Pois o padre teria arrancado o dela e tascado um beijo “daqueles que um namorado dá” em sua orelha, segundo Rita.

Fingiu que estava com sono e virou-se para o lado. A outra irmã, diz, não teve a mesma sorte. Não teve coragem de perguntar o que passou na cama que o trio dividia (ouviu barulhos), “mas de manhã, na missa, ela não comungou”. 

O que se seguiu, segundo Rita: lacrimejando, Rodrigo pediu perdão caso ela tenha pensado mal dele. Depois começou a espalhar para o resto do grupo que “ela estava com a síndrome das irmãs da Arca”, com invencionices.

Um dos documentos aos quais a Folha teve acesso, de 2006, é um fax enviado pela mãe de uma vítima ao cardeal Lorenzo Baldisseri, à época núncio apostólico (equivalente a embaixador) no Brasil. 

Algo não cheira bem na Arca de Maria, ela escreveu. Padre Rodrigo seria “adepto de práticas pouco aceitas hoje tanto pela Igreja quanto pela sociedade”, como o “uso de grossas correntes com cadeados em várias partes do corpo”, uma forma de autoflagelação.

Ela narra uma espécie de lavagem cerebral sobre as jovens recrutadas, que passariam a rejeitar a família, inclusive com agressões verbais. Castigos que o clérigo julgasse necessários —vamos supor que à noviça sobrasse rebeldia e faltasse humildade— envolveriam dieta a pão e água.

“Cheguei à depressão gravíssima, ao ponto de querer acabar com minha vida. Abri mão de tudo para ser noviça e chegar ao céu e estava vivendo o inferno lá dentro”, diz Renata. ​

Rita afirma que “não vê tanta vontade de resolver”, por parte da Igreja, o caso de Rodrigo, dado o passar dos anos e a ausência de um epílogo. 

O Vaticano chegou a enviar a Goiás um “visitador apostólico”, o frei Evaldo Xavier Gomes, consultor jurídico da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Gomes disse à Folha que “concluiu seu serviço em 2015”, mas não quis especificar o parecer que deu após investigar casas “das Irmãs Escravas do Divino Amor, vulgarmente conhecidas como Arca de Maria”.

Padre Juvêncio, de Anápolis, diz que Rodrigo, que foi seminarista na cidade, nunca foi bom em receber ordens. “‘Rapaz, não faz isso’, tentava aconselhar.” E nada.

Afirmou desconhecer detalhes dos processos de abuso que pairam sobre o padre. O bispo da região, que estaria a par de tudo, está hospitalizado, conta.


O padre Fabio, de Ciudad del Este, diz que “o delicado das acusações” impossibilita uma conclusão mais veloz do caso.

“Há que se garantir o direito de defesa.” E é preciso considerar, por exemplo, empecilhos físicos (há testemunhas em Portugal, Espanha e Brasil) e o fato de o réu, “que viaja com frequência”, estar fora da diocese para receber notificações. “Isso faz parte de seu processo de desobediência.”

OUTRO LADO
Por telefone, Rodrigo se diz alvo “de calúnia há algum tempo, razão pela qual estou processando criminalmente 11 [mulheres que o acusam]”.

Para ele, “quem tem feito as falsas acusações tem atrás de si interesses de organizações mais poderosas”, que “instrumentalizam essas pessoas, que possuem problemas de ordem psicológica”, para atingi-lo. Cita “casos de homossexualidade” de duas irmãs que se voltaram contra ele.

Diz Rodrigo que “enfrenta oposição dentro e fora da Igreja” por ser conservador. Em redes sociais, já manifestou simpatia por Jair Bolsonaro (PSL), pediu “uma Ave Maria para livrar o Brasil do comunismo” e atacou uma artista feminista que se despiu num santuário na França (“ou você faz parte da descendência de Maria ou você faz parte da descendência de Satanás”).

Qualquer um poderia ser vítima do “factoide” que lhe tentam imputar, afirma.

“Qualquer pessoa pode mandar uma denúncia para Roma. Se disser que você é um alienígena querendo destruir a Igreja, pode mandar”. E o atual bispo de Ciudad del Este “não me conhece direito, não tem obrigação de crer em mim”, mas ele irá provar sua inocência, diz.

“Em pouco tempo”, segundo ele, “ficará claro que a acusação de abuso é caluniosa”.

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