Salvador

Uma verdadeira praga urbana

Imagem Uma verdadeira praga urbana
A expectativa é de 4 mil flanelinhas nas ruas de Salvador neste verão  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 25/12/2010, às 12h00   Redação Bocão News


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- Aqui você não estaciona nunca mais...
O professor de Matemática Marcelo Santana da Silva jamais calculou que ouviria esse tipo de ameaça numa via pública. As palavras ofensivas vinham de um guardador de carros da rua Clara Nunes, transversal da avenida Tancredo Neves, onde no início do mês passado parou o carro para ir a uma agência bancária no Salvador Trade Center.  

Ao chegar ao local, não foi abordado por ninguém. Somente uma hora depois, ao sair da agência, um homem se aproximou e cobrou a “dívida” de R$ 2. Diante da negativa do professor, veio a ameaça (veja diálogo abaixo). Muita gente ouve o que Marcelo ouviu. A diferença é que ele voltou ao local com a polícia. “Não podia sofrer uma ameaça daquelas e não fazer nada, ficar calado”. Foi à 35ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM), na região do Iguatemi, e retornou acompanhado de uma viatura.
Encaminhado à 16ª Delegacia, na Pituba, o guardador de carros foi ouvido e liberado em seguida.

Infestação
Armados com as características flanelas, eles estão por toda a parte. Problema social ou não, o fato é que nos últimos anos se tornaram uma praga urbana. A cidade está infestada.

A estimativa do Sindicato dos Guardadores de Veículos da Bahia (Sindiguarda), que tem mil guardadores regulamentados, é de que o dobro disso atue clandestinamente. Mas esse número aumentaria 50% nessa época, o que significa que 3 mil guardadores clandestinos entram em atividade durante o Verão.

Atuam perto de bares, centros comerciais, praias, teatros e, principalmente, nas imediações das casas de show. Em geral, agem de forma arbitrária. Os casos de ameaças, coação, extorsão e carros danificados não são poucos.

Basta tentar parar o veículo em bairros como Rio Vermelho, Comércio, Pituba, Campo Grande, Paralela e no centro da cidade. O estudante de Direito Marcelo Barbosa relata que chegou às vias de fato com um flanelinha. Aluno da Faculdade D. Pedro II, depois de deixar o carro na avenida Estados Unidos, no Comércio, encontrou o guardador encostado na porta do veículo. Segundo conta, foi impedido de entrar no próprio carro. “-Você estacionou aqui ontem e não pagou. Me deve R$ 4...”. O estudante entrou pela outra porta, pegou a trava antifurto e avançou contra o guardador, que, ao tentar se defender, teve o braço quebrado. “Aqui no Comércio eles ainda colocam cones para guardar lugar e lavam o carro sem você pedir”.

Extorsão
Nas redondezas das principais casas de show da cidade, mais tentativas de extorsão. Junto com o namorado, a estudante de jornalismo Louise Mendonça, 23 anos, voltava de um show na Concha Acústica quando percebeu que um flanelinha havia traspassado uma corrente que impossibilitava a saída do veículo. “Na chegada ele cobrou R$ 10, mas demos só R$ 5.  Quando voltamos tava lá a corrente”. Depois de muita discussão, ao perceber que a quantia não seria paga, o guardador liberou.

Até os fiéis da Igreja Nossa Senhora da Luz, na Pituba, sofrem com o problema. O estacionamento público, também utilizado por pessoas que frequentam o Teatro Jorge Amado e centros comerciais da Pituba, é loteado por quase uma dezena de guardadores.

A pedagoga Maria Tereza Souza, 31 anos, costuma parar o carro perto da igreja para ir ao médico. Da última vez, teve o vidro do carro esmurrado por um guardador depois que se negou a pagar. “Agora só vou a pé ou acompanhada de meu marido”. Um dos funcionários da igreja confirma. “Xingam, chutam o carro”.

No caso do professor de Matemática, no dia da foto para a reportagem, ele voltou a se encontrar com o homem que o ameaçou . O enxergou de longe. Se chama Cláudio e negou tudo ao CORREIO. Quando soube,  Marcelo fez uma pergunta. “Você acha que ia perder uma tarde inteira na delegacia para prejudicar um trabalhador?”.

O bate-boca reproduzido aqui  é comum, quase todos os motoristas já passaram por isso. Mas, em caso de ameaça, é aconselhável chamar a polícia. Foi o que fez Marcelo.

Cláudio (Flanelinha )
- Opa! Tem que contribuir com o pedágio de R$ 2. Estacionou aqui tem que contribuir...
Marcelo (Professor )
- Amigo, eu não tenho nada. Não tenho trocado...
Cláudio (Flanelinha )
- Não tem ou não quer dar? Aqui todo mundo tem que colaborar.
Marcelo (Professor )
Amigo, eu não tenho. A rua é pública...
Nesse momento, o professor arrancou o carro, mas ainda ouviu a ameaça
Cláudio (Flanelinha )
 - Ah, é? Vou logo avisando que aqui nessa rua você não estaciona mais...
O professor deixa o local, mas volta com a polícia. A viatura leva o flanelinha para a delegacia

PM e Transalvador: jogo de empurra
A assessoria da Transalvador informou que o órgão de fiscalização do trânsito só responde pelos agentes que atuam nas zonas azuis - onde a prefeitura cobra  estacionamento - e  que a atuação de flanelinhas  é um problema de segurança pública. A PM discorda. O tenente-coronel Sérgio Baqueiro, do departamento de comunicação, diz que a fiscalização de guardadores informais é questão de ordenamento municipal.  “É a mesma coisa dos ambulantes”. Mas, Baqueiro reconhece que, quando há ameaça ou extorsão, a PM deve ser acionada.

‘É impossível controlar todos’, diz sindicato
O Sindicato dos Guardadores de Veículos da Bahia (Sindiguarda) admite que não há como ter controle sobre os clandestinos. “Sem a ajuda do poder público, é impossível controlar todo mundo”, diz o presidente da entidade, Melquisedeque de Souza. Ele explica que há dois grupos de guardadores regulamentados. Os que atuam nas zonas azuis - áreas exploradas legalmente pela prefeitura - e os que atuam em quaisquer locais onde é permitido estacionar. O último tem carteira registrada, trabalha com fardamento e não pode exigir que o motorista pague. “O motorista só paga se quiser e quanto quiser”.

Jardim dos Flanelas: o inferno na Pituba
Pela quantidade de bares e casas noturnas, a Pituba vive dias infernais no que diz respeito a guardadores de carro. Sem locais regulamentados, os clandestinos agem livremente em ruas como a Minas Gerais e a São Paulo, mas principalmente no Jardim dos Namorados, que poderia muito bem ser chamado de Jardim dos Flanelas.

Nas proximidades da boate Madre e do Caranguejo de Sergipe, o lugar é apontado como o purgatório dos motoristas. Em maio desse ano, o publicitário Rafael Souto, 24 anos, estacionou no local para ir ao bar Garota Carioca. Um guardador lhe entregou um papel impresso: “Pagamento antecipado: R$ 5”. A promessa de Rafael era de pagar na volta.

Mas, como só saiu do bar às 4h, não encontrou mais ninguém e teve a pintura do seu Fox arranhado de um lado a outro. “Os guardadores só costumam ficar lá até 1h30. Aquilo é uma indústria organizada. Ganham dinheiro usando a rua, que até onde eu sei é um espaço público”, reclama.

Os guardadores que atuam no local, alguns deles com o colete do Sindiguarda, se defendem. Negam as ameaças. “A gente aceita o que puderem dar”, disse um grupo de três guardadores, que, ao mesmo tempo, acham correto cobrar. “A gente protege os carros e os donos encontram tudo nos conformes. Então tem que pagar, né?”.

‘Detergente’ é gente fina ali no Comércio
Para a maioria dos motoristas, flanelinha é sinônimo de aborrecimento e, em alguns casos, coisa bem pior. Mas as exceções estão por aí para confirmar a regra. Há guardadores de carros queridos por quem tem à disposição os seus “serviços”. O guardador Aílton, conhecido como “Detergente”, tem muita moral com a galera da Faculdade Dom Pedro II, no Comércio. A partir das 18h, só dá ele na rua da Argentina. Nunca cobrou para passar o olho nos carros que lotam o lugar em dia de aula. “Ninguém tem a obrigação de me dar nada”, diz o próprio.

Um dos professores do curso de Direito, Adriano Basto, revela que Detergente faz questão de acompanhar as alunas até a porta dos carros como uma forma de protegê-las. “Detergente não faz mal a ninguém. Com ele aqui a rua fica mais segura”.

Usando a política da boa vizinhança, o guardador percebeu que acaba faturando mais. “Os que não me dão nada é quem eu mais ajudo. Assim, sem forçar, acabo conquistando eles e ganhando mais clientes. No final da noite, embolso mais que os outros guardadores”.

Com informações do Correio

Classificação Indicativa: Livre

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