Saúde

Vírus "zumbis" estão acordados após 50 mil anos devido ao aquecimento global; entenda

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Os efeitos do aquecimento global na Sibéria são uma faca de dois gumes para a economia russa  |   Bnews - Divulgação Reprodução// Pixabay

Publicado em 16/10/2023, às 15h19   Cadastrado por Mariana De Siervi


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Passar duas semanas acampando nas margens enlameadas e infestadas de mosquitos do rio Kolyma, na Rússia, pode não parecer uma viagem de trabalho glamourosa. No entanto, foi um sacrifício que o virologista Jean-Michel Claverie estava disposto a fazer para desvendar a verdade sobre os vírus zumbis, um perigo decorrente das mudanças climáticas para a saúde pública. As informações são do O Globo.

 Suas descobertas trazem à tona a realidade sombria do aquecimento global, à medida que o mesmo descongela solos que estiveram congelados por milênios. Claverie, aos 73 anos, dedicou mais de uma década ao estudo de vírus "gigantes", inclusive aqueles com quase 50 mil anos, encontrados nas profundezas das camadas de permafrost da Sibéria.

Isso acontece devido o planeta já estar 1,2°C mais quente do que nos tempos pré-industriais, e os cientistas preveem que o Ártico poderá ficar sem gelo nos verões até 2030. Com isso, a uma preocupação de que o clima mais quente possa libertar gases com efeito de estufa retidos, como o metano, na atmosfera, à medida que o permafrost da região derrete, foram bem documentadas.

Porém, os agentes patogênicos latentes são um perigo menos explorado. No ano passado, a equipa de Claverie publicou uma investigação que mostrava que tinham extraído vários vírus antigos do permafrost siberiano, todos eles infecciosos.

“Com as alterações climáticas, estamos habituados a pensar em perigos que vêm do sul”, disse o virologista, durante uma entrevista concedida em seu laboratório no campus Luminy da Universidade de Aix-Marseille, na França, se referindo à propagação de doenças que são transmitidas por vetores de regiões tropicais mais quentes.  “Agora, percebemos que pode haver algum perigo vindo do norte, à medida que o permafrost descongela e liberta micróbios, bactérias e vírus”, afirmou também.

Existem ainda novas maneiras surgindo pelas quais essa situação pode constituir uma ameaça. No verão de 2016, uma onda de calor na Sibéria fez com que esporos de antraz fossem ativados, resultando em dezenas de infecções, uma criança e milhares de renas mortas. Em julho deste ano, uma equipe de cientistas diferente divulgou descobertas que indicam que até mesmo organismos multicelulares poderiam sobreviver às condições do permafrost em um estado metabólico inativo, conhecido como criptobiose. Eles conseguiram efetivamente revitalizar uma minhoca de 46 mil anos do permafrost siberiano apenas ao reidratá-la.

O professor emérito do Instituto Max Planck de Biologia Celular e Molecular e Genética, Teymuras Kurzchalia, participou dos estudos e destaca: “É fundamental do ponto de vista de que podemos parar a vida e depois reiniciá-la. Isso significa que é inato a alguns organismos vivos diminuir ou suspender de alguma forma os processos metabólicos”, explicou. 

Ao longo dos anos, as agências de saúde internacionais e os governos têm acompanhado doenças infecciosas desconhecidas, para as quais os seres humanos não teriam imunidade ou tratamentos medicamentosos. Em 2017, a Organização Mundial da Saúde incluiu uma "Doença X" genérica em uma lista de agentes patogênicos considerados de alta prioridade para investigação, visando desenvolver medidas para prevenir ou controlar uma epidemia. Desde que a pandemia de Covid-19 fechou o mundo por meses, os esforços têm se intensificado ainda mais.

“A OMS trabalha com mais de 300 cientistas para analisar as evidências sobre todas as famílias virais e bacterianos que podem causar epidemias e pandemias, incluindo aquelas que podem ser libertadas com o degelo do permafrost”, disse a porta-voz da OMS, Margaret Harris.

Claverie demonstrou pela primeira vez, em 2014, que era possível extrair com sucesso vírus "vivos" do permafrost siberiano. Sua pesquisa, por questões de segurança, concentrou-se exclusivamente em vírus que infectam amebas, uma vez que estão suficientemente distantes da espécie humana para evitar qualquer risco de contaminação acidental. 

No entanto, ele sentiu que a ameaça à saúde pública indicada pelas descobertas foi subestimada ou erroneamente considerada como algo raro. Dessa forma, em 2019, sua equipe isolou 13 novos vírus, incluindo um que estava congelado em um lago há mais de 48.500 anos, a partir de sete amostras diferentes do antigo permafrost siberiano. Ao publicar essas descobertas em um estudo de 2022, ele enfatizou que uma infecção viral causada por um patógeno antigo e desconhecido poderia ter consequências potencialmente "desastrosas" para humanos, animais e plantas.

 “50 mil anos atrás no tempo nos levam à época em que o Neandertal desapareceu da região. Se os neandertais morressem de uma doença viral desconhecida e este vírus ressurgisse, poderia ser um perigo para nós”; explicou Claverie.

O solo do permafrost, que já foi habitado por animais, oferece condições ideais para a preservação da matéria orgânica: é natural, escuro, carente de oxigênio e possui atividade química muito limitada. Na Sibéria, chega a atingir um quilômetro de profundidade - o único lugar no mundo onde o permafrost vai tão fundo - e cobre aproximadamente dois terços do território russo. Foi descoberto que apenas um grama desse solo abriga milhares de espécies microbianas adormecidas, conforme um artigo publicado na revista Nature em 2021.

Durante 400.000 anos, as profundezas congeladas do permafrost permaneceram firmes e estáveis. Cidades russas até surgiram na vastidão da Sibéria, fincando suas raízes no solo congelado. No entanto, o Ártico está aquecendo a uma velocidade alarmante, superando qualquer outra região do planeta. Como resultado, enormes crateras de metano têm surgido por toda a região, ameaçando engolir cidades inteiras. E como se isso não bastasse, a geopolítica complicou ainda mais a situação. Viajar para a Sibéria e colaborar com laboratórios russos já não era uma tarefa fácil, mesmo antes da Rússia invadir a Ucrânia em Fevereiro de 2022. Agora, as comunicações com antigos colegas e colaboradores no país estão praticamente interrompidas. O laboratório de Claverie, assim como muitos outros em todo o mundo ocidental, depende de financiamento governamental.

Os efeitos do aquecimento global na Sibéria são uma faca de dois gumes para a economia russa. Por um lado, o degelo do permafrost está colocando em risco infraestruturas no valor de uma fortuna - cerca de 250 bilhões de dólares - e até contribuiu para desastres ambientais como o derrame de petróleo de Norilsk em 2020. O solo está ficando cada vez mais instável e isso não é nada bom.

Por outro lado, a região é um verdadeiro tesouro de recursos naturais. Tem carvão, gás natural, ouro, diamantes e minério de ferro. Diferente de outras áreas com permafrost, como o Alasca e a Groenlândia, a Rússia tem sido bem ativa na mineração dessas terras congeladas. Eles estão cavando buracos por todos os lados!

Mas há um porém. Alguns cientistas estão preocupados com a tecnologia que a Rússia está usando, como a central nuclear flutuante Akademik Lomonosov. Essa tecnologia pode transformar áreas inacessíveis ao longo da costa siberiana em centros de mineração, à medida que as rotas sem gelo pelo Círculo Ártico se tornam mais acessíveis. O problema é que essa exploração mais profunda, além da camada que descongela no verão, aumenta o risco de contato humano com antigos agentes patogênicos prejudiciais. É um dilema complicado: enquanto caçamos a próxima grande ameaça para a humanidade, podemos inadvertidamente espalhar o perigo.

E tem mais. Durante expedições de amostragem, há um alto potencial de contaminação cruzada. Por isso, algumas pessoas estão começando a defender abordagens menos proativas, que exigem menos recursos. É uma questão delicada, mas é preciso pensar bem antes de agir.

 Seria bom estabelecer uma forma especializada de acompanhar a população Inuit, por exemplo, para ver que tipo de doenças eles contraem. E se houver algo vindo do permafrost, seremos capazes de capturá-lo muito mais rapidamente — diz Claverie. 

As grandes organizações também estão a acordar para este risco. No início do mês de outubro, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional abandonou o seu projeto de 125 milhões de dólares para caçar vírus no Sudeste Asiático, África e América Latina que poderiam potencialmente infectar seres humanos, devido a preocupações de que a própria investigação pudesse desencadear uma pandemia.

Entretanto, Claverie não regressará à Sibéria, independentemente do resultado da guerra. Ele diz que afirmou que o perigo existe e que expedições para descobrir mais segredos enterrados nas profundezas congeladas seriam uma loucura.

“Quanto mais velho você fica, melhor você se torna em filosofia. Talvez seja melhor deixar essas coisas de lado” afirmou. 

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