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Maioria das pessoas trans que retificam gênero antes dos 18 anos não volta atrás

Sociedade Brasileira de Pediatria orienta seus profissionais que perceberam manifestação de inconformidade de gênero da criança ou adolescente  |  Filmbetrachter/Pixabay

Publicado em 22/01/2023, às 15h08   Filmbetrachter/Pixabay   Bruno Lucca/Folhapress

"Se eu morrer, posso voltar como uma menina?", perguntou Agatha, aos três anos e meio, segundo relata a mãe, Thamirys Nunes.

Uma menina trans, Agatha tem hoje sete anos. A questão, que ainda deixa Thamirys inquieta ao recordar, foi o ponto de partida da retificação de gênero da garota, que, segundo a mãe, ficou mais feliz e confiante desde então, sem manifestar dúvidas sobre a sua nova identidade.

Agatha pode não ser exceção. Estudo feito por uma clínica referência em identidade de gênero na Holanda mostra que 98% das pessoas que iniciaram a retificação de gênero antes dos 18 anos mantêm o tratamento hormonal na maioridade -o que sugere que não se arrependeram da decisão.

Os resultados foram publicados, em outubro do ano passado, na revista médica The Lancet Child & Adolescent Health.

Participaram indivíduos que fizeram supressão da puberdade, tratamento inicial para transgêneros que impede o desenvolvimento de características biológicas adultas, antes de utilizar hormônios de afirmação de gênero, método só permitido a partir dos 16 anos, mas que costuma ter início aos 18.

Entre os 720 participantes, inicialmente 220 (31%) foram designados do sexo masculino ao nascer e 500 (69%), do sexo feminino. A idade média para o início da supressão da puberdade para os participantes biologicamente masculinos foi de 14 anos; para femininos, de 16 anos.

Setecentos e quatro indivíduos (98%) continuaram usando hormônios de afirmação de gênero após a terapia inicial e prosseguiram na maioridade.

Para chegar aos resultados, o estudo vinculou seus dados, coletados em 2018, ao registro nacional de prescrição hormonal da Holanda. Assim, foram mapeados os jovens ainda recebendo injeção hormonal naquele ano.

Sobre os 2% que não usam mais hormônios de afirmação de gênero, os cientistas dizem não saber se eles pararam o tratamento porque se arrependeram da transição. Novos estudos sobre o tema estão previstos.

Karen de Marca, diretora da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, avalia que o resultado do estudo condiz com avaliações clínicas de todo o mundo sobre atendimento à população trans. "Se a pessoa inicia seu tratamento de adequação sexual ainda na menoridade, observamos serem maiores as chances de autossatisfação e uma vida plenamente feliz."

Segundo ela, o acompanhamento do processo é muito importante. "Quando a criança primeiro manifesta a sua incongruência de gênero, já é acionada uma equipe multidisciplinar para atendê-la. São psicólogos e médicos de diversas especialidades", diz a especialista.

Em relação ao grupo que não prossegue o tratamento, Marca diz serem raros os casos. "Estima-se que 0,5% da população trans mundial desista da terapia para afirmação de gênero. É algo difícil de mensurar porque, em muitos casos, essas pessoas param de frequentar o consultório médico."

A Sociedade Brasileira de Pediatria orienta a seus profissionais que, percebendo manifestação de inconformidade de gênero da criança ou adolescente, se faça uma observação criteriosa antes de encaminhar o paciente uma junta médica responsável pelo tema.

A retificação de Agatha também mudou a rotina de sua mãe. Thamirys, além de acompanhar a filha em todos os seus passos, passou a se dedicar ao movimento trans e, principalmente, a dar visibilidade às crianças inseridas nele.

De Curitiba, a história da família ganhou o país a partir do perfil do Instagram Minha Criança Trans, criado para compartilhar o crescimento e as vivências da menina. Hoje, a página tem pouco mais de 96 mil seguidores. Em 2020, o projeto virou um livro e, em novembro, uma ONG. Minha Criança Trans é primeira organização brasileira a tratar especificamente dos direitos, inclusão e qualidade de vida de crianças e adolescentes trans.

"Falar da Agatha é falar sobre liberdade. Não esquecendo as dificuldades, claro, mas eu quero focar a felicidade da minha filha", diz Thamirys.

Thamirys diz ser a ONG a realização de um sonho. Ela relata ter preocupação com o futuro de crianças trans, especialmente de sua filha, e diz que fará tudo ao seu alcance para a proteção delas.

Thamirys conta com uma rede de apoio com mães de crianças e jovens trans de todo o país, como a funcionária pública carioca Isabel de Lima, 48.

Ela conheceu Thamirys durante o processo de retificação da filha, Estela, de 16 anos. Durante a infância de Estela, Isabel notava que a menina fugia dos estereótipos de gênero, mas não sabia como denominar aquilo. Ao assistir a uma reportagem sobre crianças transexuais, ela percebeu que poderia ser o caso da filha.

Então, a menina, aos quatro anos, foi levada a uma psicóloga. A profissional, nas palavras de Isabel "muito despreparada", negou as suspeitas da mãe. Segundo a terapeuta, Estela era feminina por conviver muito com a mãe.

Isabel não aceitou a explicação, porém julgou melhor esperar pelo momento em que a filha se assumiria. O processo foi longo.

Primeiro, Estela se identificou como homem gay. Anos depois, a garota se disse pessoa não binária, passou por gênero fluído-que não se identifica com um único papel de gênero-- e terminou, em 2021, por se reconhecer como transexual.

Isabel demorou a entender a mudança. Não por preconceito, diz, e sim por desconhecimento. A primeira coisa que fez foi ganhar tempo para entender tudo. O primeiro passo foi trocar o nome da filha em sua agenda de contatos para sempre se lembrar de usá-lo. "O nome é a coisa mais importante para uma pessoa", afirma.

Em seguida, ligou para a escola. Queria que a instituição fizesse o mesmo. O tratamento hormonal para afirmação de gênero foi o passo seguinte. Por um curto período, Estela fez a supressão da puberdade antes de iniciar com a injeção de hormônios femininos. Isabel nunca deixou de acompanhá-la.

"Hoje, Estela se diz feliz. Feliz e completa. Mas isso não afasta o medo que sinto. É o medo de toda mãe. O país é cruel para pessoas como ela", diz.

Classificação Indicativa: Livre


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