Educação

O governo Bolsonaro e a proposta de “militarização das escolas”

Imagem O governo Bolsonaro e a proposta de “militarização das escolas”
Bnews - Divulgação

Publicado em 10/01/2019, às 12h44   Penildon Silva Filho*


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O novo ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, em entrevista a diversos meios de comunicação na semana passada anunciou a criação de uma subsecretaria no MEC para estimular a transformação de escolas municipais em “colégios cívico-militares”. A ideia faz parte de uma das promessas de campanha do presidente Jair Bolsonaro. Segundo seu programa de governo há a previsão de pelo menos um colégio militar em todas as capitais até 2020, mas agora já se fala em um colégio desse tipo em cada cidade do Brasil. Segundo Vélez, “Vai haver no Ministério da Educação uma área que cuide disso, uma subsecretaria para tratar de iniciativas cívico-militares para colégios municipais que queiram participar”, disse ao ser questionado sobre a promessa de Bolsonaro de difundir as escolas militares pelo País.

O discurso utilizado é o mesmo que vem sendo veiculado em alguns estados que justificam a militarização com o argumento de que há muita violência nas comunidades, ou que os alunos precisam de disciplina, e os professores não estão sendo suficientemente fiscalizados em suas funções. Argumentos frágeis, mas que merecem uma atenção mais detida. Colégios militares (ligados às Forças Amadas), ligados à polícia militar de cada estado ou ainda com a gestão feita por militares da reserva se misturam nessa discussão, que acompanha uma cultura que tenta se impor nacionalmente, sem debate, e almeja o controle social, a eliminação de correntes de pensamento adversas a quem está no governo e busca pela “disciplina”. Os defensores dessa tese a defendem porque supostamente os resultados nas avaliações do MEC dessas instituições seriam superiores. Faremos aqui um debate acerca do tema, e aproveitaremos uma mobilização na Bahia que resultou num abaixo assinado contra as escolas militarizadas, em que apresentaram algumas informações e argumentos importantes.

O argumento de que essas escolas militarizadas têm um desempenho melhor do que as demais escolas públicas é falacioso, pelo simples fato de que a composição de seu alunado não é “aleatória” (como se diz em linguagem de metodologia de pesquisas quantitativas), ou seja, há uma reserva de 70% (às vezes mais, às vezes menos) das vagas para filhos de policiais, o que já determina um perfil específico, que não é o perfil do conjunto dos nossos jovens. A literatura científica tem pesquisas que indicam que a pré-seleção determina muito do resultado final, pois a composição social, o nível de renda, a escolarização dos pais, o meio social, são variáveis que impactam mais nos resultados da Educação do que os elementos internos à Escola.

Vejamos um caso semelhante: por que os alunos das universidades federais e das estaduais são os que têm melhor desempenho nos testes do INEP e se saem melhor no mercado de trabalho? A resposta é simples: porque, além dessas instituições terem qualidade superior, o processo seletivo na entrada dos cursos favorece aqueles que se saem melhor nos estudos. A UFBA, para ilustração, tem mais de 100 mil candidatos nas seleções anuais do Sistema de Seleção Unificada, o SISU, para cerca de 7.500 vagas, por isso os que entram pelas cotas e os que vem de escolas privadas são uma parcela bem pequena do total de candidatos, tiveram um bom desempenho na seleção e terão mais facilidade para acompanhar os cursos e conseguirão um bom desempenho geral. A título de exemplo do que acontece em diferentes estados da Federação sobre a reserva de vagas dos alunos para um segmento específico, vejam (aqui) a matéria sobre a inscrição nos colégios militarizados. E o próprio edital de seleção (aqui). 

Os Colégios Militares selecionam, escolhem seus alunos, mas os estudantes das demais escolas têm um perfil mais diversificado de origem social, e isso é importante pois a Educação deve ser universal. Além dessa realidade, é importante verificar que há uma resolução do Conselho Nacional de Educação proibindo esse tipo de reserva de vaga, e devemos recordar que a lei federal das cotas, que já teve reconhecimento constitucional pelo STF, se dirige a segmentos historicamente discriminados, o que é bastante diferente do caso. Essa reserva de vagas para filhos de militares e para os servidores que já trabalham dentro dessas escolas contraria o preceito constitucional da universalidade de acesso para a Educação Básica, e com certeza gerará um questionamento político e jurídico.

Não é verdade que os colégios militarizados têm os melhores desempenhos no ENEM. Segundo dados oficiais do MEC/INEP, são os Institutos Federais de Educação que apresentam os melhores resultados, inclusive melhores que o setor privado. A criação e expansão dos Institutos Federais (IF) aconteceu nos Governos Lula e Dilma, na Bahia saíamos de apenas uma escola técnica no bairro do Barbalho em Salvador, para termos campi de IF em mais de 35 cidades. Essa rede tem uma política de valorização dos docentes, que ganham tanto quanto os professores das universidades federais, de acordo com seu nível de qualificação, apresenta uma estrutura física de bom nível, tem uma proposta pedagógica que não é apenas para a formação da Educação profissionalizante, mas liga essa com a formação para a cidadania, a convivência, para as Humanidades, Artes e Ciências, e por isso têm os melhores desempenhos no ingresso das universidades.

A solução para a qualidade na Educação não é disciplina militar, mas investimentos públicos e uma gestão comprometida com a promoção de direitos sociais dos alunos e da comunidade, como acontece nas universidades públicas, que têm um bom investimento público e não são militarizadas, mas são as principais e quase únicas produtoras de Ciência e Tecnologia no Brasil. A proposta de implantar a metodologia desses colégios também desrespeita a Lei 9394/96, que garante a liberdade e pluralidade de concepções pedagógicas (o que também gerará questionamentos políticos e jurídicos). Por fim lembramos que por conta do golpe civil-militar de 1964 e a consequente ditadura, imperou nas escolas brasileiras entre os anos 60 a 80 uma corrente pedagógica
denominada de tecnicista que foi combatida e superada pelos defensores da Pedagogia Histórico-Crítica, dentre outras.

A proposta de militarização entra em confronto pedagógico com tudo que acreditamos, especialmente com o que defendia Paulo Freire, que hoje é referência internacional nas Ciências Humanas e o patrono da Educação Brasileira. Ele disse certa vez que “Não basta saber ler que 'Eva viu a uva'. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.” Ou ainda:

Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes.

Ai daqueles que pararem com sua capacidade de sonhar, de invejar sua coragem de anunciar e denunciar. Ai daqueles que, em lugar de visitar de vez em quando o amanhã pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui e o agora, se atrelarem a um passado de exploração e de rotina.

A “filosofia e metodologia militares” são a antítese desse pensamento. Respeitamos as Forças Armadas e a Polícia Militar, mas a sua natureza prescreve a obediência, a hierarquia, o respeito à autoridade sem crítica, afinal elas se preparam para a guerra, e isso é algo próprio do meio militar. Consideramos que as Forças Armadas são inclusive estratégicas para a defesa da soberania nacional e a defesa da Nação e do território, mas isso não significa que a filosofia militar seja a mais adequada para ser disseminada nas escolas brasileiras de forma geral.

Arriscamos sugerir outros caminhos para melhorar a qualidade da Educação brasileira, como uma vivência de sala de aula para entender e compreender as mudanças de mentalidade dos jovens, os novos desafios e o que de fato os professores e demais profissionais precisam. Maior interação com o "chão de sala de aula". A Educação, assim como as demais políticas públicas, precisa de quadros técnicos com compromisso político (pois nunca existe gestão “neutra” ou apenas técnica), e que se engajem no projeto de uma Escola Inclusiva, Democrática, ligada aos movimentos sociais e com o objetivo de garantir o direito à aprendizagem, o que implica planejamento, investimento, proposta pedagógica discutida com os docentes e comunidade.

Precisamos criar condições para uma formação docente de boa qualidade, com instituições sérias e com experiência e resultados comprovados, um investimento pesado em infraestrutura nas escolas, pois a precariedade compromete o bom andamento das atividades acadêmicas; discutir e propor o projeto das Cidades Educadoras, para transformar o espaço urbano em espaço de aprendizagem, ampliando o tempo educativo e implantando o projeto de Educação Integral; e garantir banda larga em toda escola. Na maior parte das escolas não há conexão na sala dos professores e os alunos não têm internet na sala de aula, nos corredores, no pátio.

O sucesso escolar está em criar um canal aberto e franco entre gestão, professores e comunidade, que indicará onde estão os problemas. Vivemos nos dias atuais uma onda conservadora na Sociedade, e há uma pregação da militarização das escolas para acabar com uma série de conteúdos e metodologias essenciais e presentes nas diretrizes curriculares dos diferentes níveis e modalidades da Educação, como a discussão sobre gênero, diversidade sexual, combate ao racismo, combate às diversas formas de discriminação. O conteúdo dos livros de História, sob uma supervisão militar, com certeza mudará. Por exemplo, tentarão mudar a parte do golpe militar de 1964 para ser a “Revolução Democrática”, e conteúdos de Filosofia, Sociologia e Geografia enfrentarão confrontos da mesma maneira.

A proposta de militarização não foi apresentada aos educadores e educadoras da rede pública de ensino, nem foi discutida com as universidades, que têm muitos pesquisadores e extensionistas na Educação Básica, ou com as instituições que pesquisam a Educação e podem contribuir para a gestão da Educação, como a ANPED (Associação Nacional de Pesquisadores da Educação) e a ANPAE (Associação Nacional de Política e Administração da Educação). A abertura do diálogo, a valorização dos professores e a busca da elaboração de um projeto pedagógico conjunto na gestão da Educação contribuem para melhorar a nossa Escola, a Democracia é essencial para a qualidade da Educação.

*Penildon Silva Filho é doutor em educação e professor da Ufba. Escreve para o BNews às quintas-feiras.

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