Feriado / 2 de Julho

Mulheres que tornaram o “2 de Julho” possível; conheça a história de Joana Angélica, Maria Quitéria e Maria Felipa

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Além delas, diversas mulheres que nunca tiveram seu nome documentado participaram do processo de Independência da Bahia  |   Bnews - Divulgação Reprodução/ arte BNews
Letícia Rastelly

por Letícia Rastelly

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Publicado em 23/06/2023, às 06h00


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Poucas mulheres conseguiram se perpetuar na história Brasileira antes do século XX. Isso não significa que elas não participaram de grandes feitos, mas sim, que foram deixadas de lado nos manuscritos, além, é claro, daquelas que foram impedidas de participar dos movimentos. Na independência da Bahia, muitas estiveram na linha de frente contra os portugueses, mas só algumas conseguiram deixar seu nome e sobrenome no “2 de Julho”. Estamos falando de Joana Angélica, Maria Felipa e Maria Quitéria.

Claro, todas as histórias que as circundam, assim como a própria Independência da Bahia, são rodeadas de fatos reais, mitos e exageros. Para saber o que se tem certeza, a partir de documentos oriundos daquela época, o BNews entrevistou historiadores, que se debruçaram sobre a vida e morte das heroínas do “2 de Julho”.

Joana Angélica

A história da freira costuma ser contada em uma versão bem resumida: as tropas portuguesas queriam invadir o Convento de Nossa Senhora da Lapa e ela se colocou a frente, tentando impedir, o que fez um soldado matá-la para ter acesso ao espaço. Foi assim que ela se tornou mártir da Independência da Bahia. Mas a história da abadessa é mais densa do que esse resumo. De acordo com o historiador Rafael Dantas, é preciso entender o contexto de Salvador e da Bahia no século XIX.

“Um contexto enraizado nos valores católicos, na importância que os próprios conventos e que os símbolos e as construções religiosas possuíam. Naquele período, entre 1821 e 1822, especialmente em fevereiro de 22, já tínhamos uma série de tensões e conflitos na cidade do Salvador. O local já estava caracterizado por essas tensões entre os portugueses e os brasileiros; os portugueses no sentido de colocar o Brasil e a Bahia em uma situação de submissão- novamente, e os brasileiros já com espírito de rompimento, de uma tentativa de liberdade que vai aos poucos se concretizando”, explica Dantas.

Sobre a morte da sóror, o historiador detalha: “É nesse sentido que, em fevereiro, as tropas portuguesas, por conta de uma mudança de Comando, invadem o Convento da Lapa procurando possíveis revoltosos. E o convento é um espaço sagrado, onde não se pode entrar, muito menos os homens. E é nessa ação que joana se coloca na frente para impedir a entrada dos combatentes e ele acaba sendo golpeada por uma baioneta, levada por um soldado, e morre, aos 61 anos (...) ela foi imortalizada por esse ato de bravura, uma mártir, depois se tornando heroína no processo da independência do Brasil, na Bahia”, detalhou o historiador.

Segundo o padre Aderbal Galvão, que é responsável pela igreja do Convento, a madre, assim como as demais, integra a comunidade onde elas pertencem: “As irmãs de clausura se dedicam à oração e só saem do convento em necessidades médicas, com autorização do bispo. Em determinado momento do dia elas vão até a grade onde escutam os pedidos de oração dos fiéis. Foi desse jeito, acolhendo as pessoas que Joana Angélica acabou sendo muito amada e respeitada pela sociedade baiana, mesmo antes da sua morte”.

É importante dizer que a morte de Joana não ocorre em prol do sentimento de patriotismo, já que estávamos em um período onde a grande maioria não tinha essa percepção. Ela se colocou à frente das tropas portuguesas pela fé, por aquele solo sagrado e por suas irmãs, sendo assim, uma mártir da fé, como dizem os católicos. Entretanto, todo esse contexto, explica também parte da comoção e revolta gerada a partir da morte da freira, que também integrava o convento há 41 anos, quando foi assassinada.

Maria Quitéria

Conhecida por ser uma mulher que se disfarçou de homem para ir para o front, Maria Quitéria de Jesus talvez seja o personagem que mais mexe com o imaginário daquele que se debruça sobre a história da independência baiana. Ela, que nasceu em 1792, em uma região próxima a Feira de Santana e ainda na infância se mudou para Tanquinho, sempre foi uma jovem que fugia dos padrões da época.

Quitéria se juntava a outras amigas e amigos para correr, cavalgar, brincar ao ar livre e usar arma de fogo, diferente do que se esperava de uma garota dessa época, que era ficar em casa, cuidando dos afazeres domésticos, bordando e se preparando para casar. A historiadora Marianna Farias, ressalta, entretanto, que o manuseio da arma de fogo não era restrito aos homens naquela época, as mulheres também sabiam usar, mas não para ir ao combate, algo destinado aos homens.

Quando Quitéria tinha por volta dos 30 anos já havia começado no país um movimento de independência. “Os batalhões estavam necessitando de homens, que tivessem qualquer formação, para fazer parte do corpo militar. Cabe salientar que não existia uma ideia de exército como temos hoje, estava sendo formado, então pessoas comuns, indígenas, africanos escravizados, libertos e toda sorte de gente que você imaginar compunham os batalhões”, explicou a especialista.

Foi nessa época que Quitéria estava à mesa, jantando com sua família, e chega um emissário falando sobre a tirania de Portugal e sobre a guerra que estava por vir e informando que precisava de voluntários para guerrear em seu nome. O pai da futura heroína do país diz que não tem filhos homens, nem iria enviar escravos. Nesse momento, a filha se manifesta.

“‘Eu quero ir! Quero ir lutar nessa guerra’. O pai a repreende e diz que lugar de mulher não é na guerra, é em casa, fiando, tecendo, bordando, se preparando para o matrimônio. No dia seguinte ela foge de casa e cavalgando chega à casa da sua irmã, Tereza, que era casada com um rapaz chamado Medeiros. Com a ajuda deles, Maria corta os cabelos, veste as roupas de seu cunhado e pega emprestado o nome do seu dele, agora ela se chama Medeiros e é assim que ela vai até Cachoeira se alistar em um dos batalhões”, detalha Marianna.

Quitéria entra na artilharia, mas não fica muito tempo- há relatos de que seria pelo corpo frágil- e acaba indo para infantaria. Ela permaneceu sob o disfarce de Medeiros, como se fosse filha de sua irmã com seu cunhado. Porém, seu pai, que estava a sua procura, percorreu todo o recôncavo até encontrá-la. “Ele rapidamente foi até o comandante, major Silva Castro, e expôs a filha. Todo mundo se espanta com aquilo, mas a resposta do militar é que ela era muito boa no que fazia ali e se quisesse podia ficar. Então, Maria Quitéria, contrariando o pai, fica no batalhão”, explica a especialista.

Ainda segundo a historiadora é importante esclarecer um mito: durante as batalhas ela já tinha assumido sua identidade como mulher e era chamada por Maria de Jesus ou Maria Quitéria, não mais por Medeiros. Sabe-se que ela entrou três vezes em combate, sendo o último o mais importante, pois foi quando a tropa foi atracada por soldados portugueses na estrada da Pituba que acontece o chamado batismo de fogo de Maria Quitéria.

“Ela invade uma trincheira inimiga, faz prisioneiros portugueses e ainda os leva ao acampamento brasileiro. Nessa ocasião, Pedro Labatut, que era então comandante, lhe confere as honras de primeiro-cadete. É uma mulher que foi para o exército, isso era contra a leis, mulheres não poderiam ingressar as forças armadas, e que ainda sobe na hierarquia militar. É nesse momento que ela faz a requisição de um de uma espada e de um saiote, que hoje em dia a gente vê representado nas pinturas e gravuras sobre ela”, explana a historiadora.

Por fim, após o 2 de julho há um desfile onde Maria Quitéria se apresenta junto aos comandantes. Em agosto, ela é condecorada pelo imperador Pedro de Alcântara. Depois disso, ela se casa, tem uma filha e vai morar em Serra de Agulha. Ela não consegue reaver os bens da sua família, após a morte de seu pai, e logo em seguida se torna viúva. Ela se muda para Salvador com a filha, fica muito pobre, cega, com inflamação no fígado e no anonimato ela morre, em 1953.

Maria Felipa

“Uma mulher descente de negros escravizados, que era semi-analfabeta e não tinha tantas condições financeiras, assim como grande parte dos moradores da Ilha de Itaparica, mas que se colocou à frente do processo de conquista pela Independência da Bahia”, é assim que a historiadora Clara Ferrão descreve Maria Felipa.

É importante ressaltar que a ilha foi palco de diversas batalhas por causa da sua localização, bem no meio da Baía de Todos-os-Santos, tendo acesso a Salvador e também ao Rio Paraguaçu, que banha o Recôncavo da cidade, onde, naquela época, ficava o poder local.

Maria teria sido uma das principais pessoas que agiram no movimento que culminou no “2 de Julho”, sendo grande parte movida pela força popular. “A princípio ela esteve na retaguarda, sendo responsável por passar informações sobre a chegada de embarcações, para que fosse possível a população se organizar”, explica Clara

Com o tempo, os ataques e saques aumentaram a ponto de, em determinado momento, chegar a informações do Recôncavo indicando que os itaparicanos deviam deixar a ilha, como forma de proteção, mas eles se recusaram. “Naquele momento existia muito uma sensação de pertencimento ao local; todo mundo se conhecia, era um lugar pequeno, as pessoas se reuniam para falar sobre tudo. E então eles decidiram continuar e se organizar de uma melhor maneira”, analisa a especialista.

Foi então que Maria Felipa se colocou à frente do movimento e reuniu um grupo de marisqueiros e pescadores, que organizaram de uma forma mais ativa, para um combate mais direto. De acordo com a historiadora, diversas batalhas foram travadas, principalmente a partir do outubro de 1822, sendo a mais importante a que ocorreu em 7 de janeiro de 1823. Essa data, inclusive, consta no calendário referente a Independência da Bahia, em Itaparica.

“Nessa data os portugueses pararam na costa e Maria Felipa, junto a outras marisqueiras, seduziram a tropa e lhe deram uma surra de cansanção, fazendo com ele não chegassem a Salvador. Existem muitas variações sobre esse feito, mas essa é a mais disseminada”, explica Clara.

Infelizmente, a historiografia ainda não reconhece a existência da Maria Felipa. Claro diz que se trata de uma situação que envolve um local muito precário, onde não há registros que sejam suficientes para atestar a existência da heroína.

“O que se tem é uma ficha crime onde Maria Felipa afirma que sua filha teria sido vítima de uma tentativa de abuso sexual. Até então poderia ser qualquer homônima, mas os envolvidos nesse processo eram pessoas renomadas que apoiaram a causa da filha dela, o que denota que essa pessoa tinha uma importância naquela cidade, principalmente se lembrarmos do contexto machista da época”, pontua a historiadora.

Entretanto, os feitos de Maria Felipa não são minimizados por isso. “Independe de ela ser hoje reconhecida ou não, a gente tem uma história cultural e simbólica muito importante ligada a ela. Uma mulher que esteve a quem de muitas narrativas, mas sempre esteve sendo ativa em momentos históricos tão importantes para a nossa independência”, finaliza Clara.

Classificação Indicativa: Livre

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