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Quem paga a conta?

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Bnews - Divulgação Arquivo Pessoal

Publicado em 09/03/2021, às 08h00   Tiago Almeida Alves


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Existe um ritual compartilhado entre os bares e restaurantes – do mais chique ao mais podre – no Brasil: a hora da conta. Do mais generoso que paga a despesa de todos ao que vai ao banheiro justo na hora da cobrança, todos os que frequentam a mesa sabem que esse momento é inevitável. Ou paga-se a conta ou lavam-se os pratos.

O rateio de conta varia conforme a tradição: paga quem se assenta na cabeceira da mesa, aquele que convida, o pretenso cavalheiro, o bom e velho “cada um que pague a sua e a amizade continua”, dentre outros modos. E a mesa paga apenas pelo que consumiu.

Se a realidade do rateio na mesa de bar é compreensível, outra realidade mais complexa é vista no direito imobiliário.

Imagine-se, por exemplo, uma operação de compra e venda de um imóvel residencial à vista. Em um processo tranquilo e regular, com despesas de transmissão (corretagem, ITIV, taxas de cartório) devidamente quitadas, o imóvel é transferido ao novo proprietário, que passa ali a residir. Após algum tempo, o comprador é surpreendido com indigestas notícias.

Descobriu a existência de boletos e avisos de atraso de dívidas do imóvel anteriores à contratação: IPTU, foro e taxas condominiais. Algumas dessas dívidas já se encontravam até em execução judicial. Uma dessas cartas, inclusive, indicaria que o imóvel pode ser posto em leilão para quitação de dívidas. Ao procurar o vendedor, este informa que essas dívidas não são mais de sua responsabilidade, por ter deixado de ser proprietário. Nesse caso, resta a pergunta: quem pagará essa conta?

Para entender a questão, recorre-se à sistemática das obrigações no direito brasileiro. Em regra, os débitos no Brasil acompanham a pessoa. Isso significa que, não importa onde o devedor more ou trabalhe, a dívida o seguirá até o pagamento. Exemplo claro disso são as dívidas de cartão de crédito.

De outro modo, existem obrigações que acompanham o bem que gerou o débito. Na expressão latina, são as chamadas obrigações “propter rem” - ou vinculadas em razão do bem, em bom português. Em via de regra, não importa se o imóvel for transmitido a outra pessoa, o débito seguirá o bem até ser quitado. Assim são muitas dívidas no ambiente imobiliário, incluindo-se parcelas de IPTU, débitos reais, como os de enfiteuse e até dívidas de condomínio.

Em relação a esses tipos de débito não há, em regra, possibilidade de se esquivar da conta das obrigações “propter rem”, indicando-se que não haveria conhecimento do débito. A responsabilidade das dívidas do imóvel seguirá quem for o seu proprietário, visto que a maioria das informações imobiliárias são disponíveis ao público na matrícula do imóvel, como a existência de um condomínio, por exemplo.

Quanto a essa publicidade, cabe explicar sobre uma questão particular relativa aos condomínios. De acordo com o direito brasileiro, os condomínios edilícios são instituídos através de convenção de seus proprietários, que aprovam suas regras através de documento escrito. Tal documento gera efeitos contra terceiros a partir de sua publicidade, quando é registrada no cartório de registro de imóveis competente.

Seguindo tal lógica, o Superior Tribunal de Justiça estabeleceu o precedente que disciplina o seguinte: as dívidas de taxas condominiais não poderão ser transmitidas aos novos proprietários se a convenção não for registrada no cartório de imóveis. De tal sorte, não haveria como o adquirente ter conhecimento da existência de um condomínio pelos meios usuais. Se a regra é a transmissão da obrigação, a exceção se dá, portanto, na absoluta falta de publicidade.

As obrigações em razão do bem também geram outro risco: o de adquirir o imóvel e não levar. Isso se dá pelo fato de que alguns débitos em questão (como IPTU e taxas condominiais) serem executáveis em juízo, podendo inclusive alienar o dito imóvel através de leilão ou hasta pública para cobertura do pagamento. E mesmo que tal imóvel seja o único bem do proprietário utilizado para fins residenciais, não haverá possibilidade de levantar o argumento do “bem de família” para impedir a sua venda forçada.

É de responsabilidade, portanto, ao comprador redobrar a atenção no momento da aquisição de um imóvel, independentemente do seu formato – compra e venda, doação, permuta, etc –, ou a conta poderá sair muito mais salgada do que se imagina.

Um dos instrumentos mais eficazes que mundo jurídico traz para chamar atenção do adquirente é a investigação preliminar. Também conhecida como “due diligence”, o instrumento é relevante para avaliar a viabilidade de uma aquisição de um bem imobiliário. De dívidas atrasadas até implicações de ordem militar, um bom pente fino feito com a investigação preliminar analisa as relações imobiliárias que possam implicar em dores de cabeça - e fazer com que o molho saia mais caro do que o peixe.
Ao fim de tudo, espera-se pagar uma conta justa. Prevenir-se desses riscos fará com que a transação seja tranquila e prazerosa – como o cafezinho após um bom jantar.

Tiago Almeida Alves é colunista do BNews, advogado formado pela UFBA, pós-graduado em Direito Imobiliário, Urbanístico, Registral e Notarial pela UNISC-RS.

Classificação Indicativa: Livre

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