Justiça

Minha presença no STF foi uma quebra de paradigma, diz advogada negra

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Advogada da periferia de São Paulo foi citada em voto da ministra Rosa Weber  |   Bnews - Divulgação Eduardo Anizelli/Folhapress

Publicado em 03/11/2019, às 08h30   Folhapress



Perfilados como um time de futebol, 12 advogados togados sorriem para as câmeras antes do início do julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a prisão em segunda instância, no último dia 17 de outubro.

No meio da foto, um passo à frente dos colegas, a figura diminuta de Silvia Souza, 35, chama a atenção. É a única mulher, e a única negra no grupo, que reunia celebridades do mundo jurídico como o ex-ministro José Eduardo Cardozo e os advogados Lênio Streck e Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.

"A minha presença no tribunal foi uma quebra de paradigma de alguma forma, uma quebra da hegemonia masculina branca", diz Souza.

Advogada da ONG Conectas, de direitos humanos, ela e seus colegas estavam ali representando entidades que eram amicus curiae no julgamento, ou seja, dando sustentação à visão de que o início do cumprimento da pena só pode ocorrer após o trânsito em julgado, previsto na Constituição.

Foram sete minutos em que expôs aos ministros do STF que o assunto não interessa apenas a presos VIP da Lava Jato, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas a uma massa de detentos invisíveis.

"Há uma deturpação do senso comum, de que essa decisão só afetaria crimes de colarinho branco. Se a gente for analisar qual o índice de presos por esses crimes, é bem menor do que, por exemplo, por tráfico de drogas", afirma.

Ela cita dados do sistema penitenciário de 2017, de que 64% dos presos são pretos ou pardos, para reforçar o argumento de que mudanças na legislação penal impactam primeiro esse universo. Na população geral, os negros são 53%.

Silvia teve pouco tempo para se preparar. Ficou sabendo que iria fazer a sustentação na véspera do julgamento, ao receber um telefonema da ONG a que é ligada enquanto estava jantando. De imediato, começou a se preparar e a reunir memoriais para embasar sua fala.

"Não deu tempo de ficar nervosa", brinca. Naquela noite, dormiu seis horas. Não era um julgamento qualquer, e ela nunca havia feito uma sustentação no STF. Advocacia criminal tampouco é sua área de especialidade, já que, ao se formar, dedicou-se primeiro à área trabalhista e, mais recentemente, migrou para a prática de advocacy.

Seu dia a dia consiste em acompanhar junto ao Congresso Nacional temas de interesse da Conectas, como direitos humanos, refugiados e enfrentamento da violência. Está sempre na ponte aérea entre São Paulo, onde vive, e Brasília.

Foi a última advogada a chegar à corte, às 13h15, pois gastou até o último minuto possível preparando-se no hotel. Falou de improviso.

"Quando a gente sobe na tribuna, não dá para ficar lendo. É a oportunidade de chamar a atenção dos ministros para o que você está defendendo. É um momento tenso, a maior corte do país", afirma.

A sensação de ter passado no teste completou-se uma semana depois, no dia 24, quando ela começou a receber mensagens sem parar em seu celular, no caminho para o aeroporto de Brasília. A ministra Rosa Weber, voto considerado decisivo para o caso, havia citado a sustentação da advogada em sua decisão. "Foi muito gratificante, muito emocionante. Fiquei lisonjeada."

Sua experiência de vida naturalmente a levou para a advocacia voltada às populações marginalizadas.

Nascida em Carapicuíba, na Grande São Paulo, cresceu na Vila Santa Rita, bairro de Itapevi, também na região metropolitana da capital, e viveu todas carências comuns às periferias. Quando chovia, o ônibus que a levava ao centro para estudar em escola pública não vinha, e o jeito era andar.

Foi a primeira a cursar uma universidade em sua família, formada pela mãe, empregada doméstica, o pai, marceneiro (separados), e dois irmãos. Com bolsa integral do Prouni, entrou no curso de direito da Unip em 2011 e formou-se em 2016. Atualmente, faz pós-graduação na Universidade Federal do ABC.

Começou a trabalhar como assistente jurídica num escritório de advocacia, e foi quando teve uma experiência que ela classifica como definidora para que entrasse de cabeça na militância negra.

Inscreveu-se em uma seleção interna para uma vaga de advogada júnior. O processo era longo, com provas envolvendo questões de múltipla escolha e dissertativas, além da redação de uma petição.

"Quando me deram o resultado, eu fui muito bem. Mas minha chefe na época me disse: 'Olha, não vai dar para te contratar, porque é uma questão de perfil'", afirmou.

Ela entendeu o que aquilo significava, mas diz que não teve forças para contestar o ato de racismo. "Eu me senti impotente. Minha decisão foi sair do escritório". A partir daí, engajou-se em movimentos como a Educafro, ONG que defende a inserção de negros em universidades.

O racismo de hoje, diz ela, é algo que se manifesta de maneira menos explícita, mas ainda muito presente.

"Hoje em dia é muito mais difícil alguém falar para mim: sai daqui, sua macaca. O tratamento é tentar inferiorizar e rejeitar a minha presença em alguns lugares, contestar o que eu estou falando, duvidar se eu estou representando uma organização", afirma.

A defesa da prisão após o trânsito em julgado, segundo ela, é fundamental para proteger a população mais pobre de abusos do Estado. "O princípio da inocência para a população mais pobre é vulnerabilizado desde a abordagem policial. O preto já é lido como um criminoso em potencial", afirma.

Juridicamente, diz ela, não há discussão sobre o que diz a Constituição. O princípio da inocência é uma cláusula pétrea e, portanto, imutável da Carta.

Questionada se foi picada pela mosca azul com a experiência e se gostaria de ser mais uma advogada milionária como grande parte do time que ali estava, Silvia ri e responde de forma firme. "Não".

"O direito para mim foi como um encantamento, pelo poder de saber quais direitos eu tinha. Para mim, o direito é uma arma, uma ferramenta de luta nas causas sociais", afirma.

Ela diz desejar que o episódio ajude a pavimentar a presença de mais pessoas com seu perfil no Supremo futuramente.

"Espero que seja um start, que mostre que existem muitos profissionais, negros e negras, com capacidade de estar ali fazendo uma sustentação num caso tão importante."

Classificação Indicativa: Livre

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