Justiça

“Não tem culpa, não tem o que resolver”, afirma juiz sobre morosidade do TJ-BA no pagamento dos precatórios

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Segundo fontes consultadas pelo BNews, má gestão e superpreferências travam pagamento da ordem cronológica do Regime Especial    |   Bnews - Divulgação Reprodução Agência Brasil // Reprodução

Publicado em 09/08/2021, às 16h48   Rafael Albuquerque


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“Sabe quantos precatórios da lista cronológica eu já paguei esse ano? Nenhum. Você sabe quantos superpreferenciais o Estado da Bahia já pagou esse ano? 826”. Nessas poucas palavras preferidas pelo juiz Cláudio Césare, que está há cerca de um ano e seis meses à frente do Núcleo Auxiliar de Conciliação de Precatórios (NACP), é possível ter uma ideia, ainda que superficial, da situação em que se encontra o pagamento pelo Tribunal de Justiça da Bahia das dívidas reconhecidas judicialmente de um ente público e o autor da ação. 

Advogados e seus clientes com créditos a receber via precatórios enfrentam longa jornada para terem seus direitos satisfeitos. Falta de pessoal, tecnologia obsoleta e entraves gerados pela própria legislação fazem com que os credores esperem anos, às vezes décadas, para receber o que lhes é devido. O pagamento dos precatórios não acontece de forma simples e uma mudança na legislação fez o processo ficar mais demorado, uma vez que a EC 109/2021 prorrogou o prazo para extinção do regime especial de pagamento de precatórios para 31/12/2028. 

A Constituição Federal prevê dois regimes, o Geral e o Especial. “O Regime Especial foi criado pelo constituinte, para todos os entes devedores que deviam precatórios até março de 2015, caso contrário está no Regime Geral. Quem não devia até 2015 vai para a regra simples. Todo ano, até 1º de julho, você tem que protocolar o seu precatório, eu solicito ao ente devedor que pague do orçamento do ano seguinte. Então, quem entra com o precatório em 1 de julho de 2021, no Regime Geral deverá ter esse precatório pago em 2022. Se você entrar no dia 2 de julho, vai para 2023”, explica o magistrado. Nesse modelo, “se porventura um ente quiser pagar todos os precatórios no dia 31 de dezembro não tem problema nenhum, pois ele tem que pagar durante o referido ano. Se não pagar durante o ano ele se submete a um possível sequestro”. 

Entrave no Regime Especial

O entrave nos precatórios acontece justamente no Regime Especial. O pagamento desta modalidade, de forma escalonada, teria que ser concluído até 2024, mas após uma nova prorrogação via Proposta de Emenda à Constituição o prazo de quitação do referido regime foi estendido até o final de 2029. 

“O mais complicado é o Regime Especial porque a Constituição vem sucessivamente mudando as regras. A Constituição disse lá atrás que o ente devedor podia pagar esse precatório, de forma parcelada, até 2024. Então, ainda que meu precatório seja de 2014, pela regra constitucional, poderia, tem tese, pagar até 2024. Só que para piorar, em março deste ano, o Congresso editou uma Emenda que prorrogou esse prazo para 2029. Sim, tudo bem, tem até 2029. Mas como é que se vai pagar isso? Você pega o montante dessa dívida e divide pelo número de meses”, salientou o juiz. 

Dois fatores fazem com que o pagamento dos precatórios do Regime Especial demore ainda mais: o pagamento dos acordos e das superpreferências. “A Constituição diz que pode destinar metade para a lista cronológica e metade para pagar os acordos. O máximo que se permite é meio a meio. Pode ser 70% cronológica e 30% para acordo. Mas o máximo é metade para cada lista. Eu publico um edital e digo que o estado um valor X para pagar em acordo, mas com um deságio de 40% (isso é o Estado quem define). Se você não quiser, você não se habilita. Às vezes quem está lá embaixo na fila, vê a perspectiva de receber logo com desconto do que receber daqui a cinco anos o valor integral. Esse dinheiro, nem sempre é aportado de vez. O Estado pode ir aportando valores mensais, ele não é obrigado a pagar à vista. À medida que o dinheiro entra, eu pago o acordo. A mesma coisa acontece com a ordem cronológica”, explicou.

Para quitar este saldo, o Núcleo Auxiliar de Conciliação e Precatórios – NACP, órgão auxiliar do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia-TJBA na gestão e pagamento de precatórios, possuía R$ 532.124.557,93 depositados em contas vinculadas para pagamento de precatórios. O valor de R$ 154.766.359,07 se encontrava depositado na conta vinculada para pagamento da ordem cronológica, enquanto o valor de R$ 377.899.650,00 se encontrava depositado na conta vinculada para pagamento de acordos diretos. Essas informações constam em uma decisão proferida pelo Juiz do NACP, publicada no DPJ do dia 05/04/2021,  nos autos do processo administrativo, cujo objeto é o regime especial de pagamento de precatórios do Estado da Bahia.

Segundo Césare, em relação à ordem cronológica a Constituição determina que só se pode pagar depois que for zerada a fila dos precatórios chamados superpreferenciais, que são, por exemplo, de pessoas com determinadas doenças, idosos e deficientes. “Se eu tiver um precatório na ordem cronológica e 20 na lista preferencial, eu não posso pagar a cronológica. Ocorre que essa lista preferencial é inflável porque todo dia algum credor faz 60 anos, a probabilidade disso é grande. Sabe quantos precatórios da lista cronológica eu já paguei esse ano? Nenhum. Você sabe quantos preferenciais o estado da Bahia já pagou esse ano? 826. E já tenho na minha lista mais 49. E depois que eu pagar esse 49 você acha que essa lista vai diminuir? Vai aumentar”, relatou durante entrevista realizada em junho deste ano. 

Ocorre que além dos entraves legais e burocráticos, credores e advogados reclamam de falta de prioridade do núcleo e denunciam supostas manobras do TJ-BA para reter dinheiro de pagamento de precatórios na conta da instituição por mais tempo, gerando rendimentos que podem ser usados em despesas do órgão. 

Atualmente, cerca de 10.760 credores de precatórios do Estado da Bahia aguardam na fila cronológica pelo pagamento de seus créditos, consequência de direitos já reconhecidos judicialmente. Segundo fontes consultadas pelo BNews, o Núcleo Auxiliar de Conciliação e Precatórios, órgão auxiliar do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, tem em conta mais de R$ 530 milhões, valores repassados pelo Estado da Bahia em cumprimento ao Plano Anual do exercício de 2020, que não foram pagos aos credores de precatórios.

Advogado reclama de indução a acordos

Crítico da atual gestão dos precatórios na Bahia, o advogado Rogério Brandão falou ao BNews sobre as reclamações dos clientes sobre o tema. “A insatisfação dos clientes com o procedimento de organização, processamento, expedição e pagamento de precatórios, é a ausência de previsibilidade, e na percepção dos mesmos, esta decorre da ausência da definição de lógicas na condução do processamento, exemplificam, para tanto, no corrente exercício, a adoção por parte do Tribunal de Justiça da Bahia, o exclusivo pagamento das superpreferencias até o dia 07/07/2021, apesar da existência de valores na conta vinculada para pagamento da ordem cronológica, suficiente para quitação dos treze primeiros precatórios da fila, decorrente de saldo existente nas contas para pagamento da ordem cronológica, no valor de R$ 151.908.793,40, resultante de transferências realizadas pelo Estado da Bahia, no ano de 2020, em cumprimento do plano anual de pagamento de precatórios daquele exercício, que não foi executado, e que por fim veio a compor como parte do valor que o Estado da Bahia teria que pagar para o exercício de 2021, o que no entendimento dos credores o cumprimento do pagamento dos superpreferenciais não anularia a execução do pagamento dos precatórios da ordem cronológica, de forma concomitante”.

Segundo Brandão, o retardamento do pagamento implica em atitude tácita de levar o credor a aderir a acordos com o Estado enquanto única maneira de receber os seus créditos. Isso porque na vigência do regime especial, pelo menos 50% dos recursos destinados ao pagamento de precatórios são utilizados no pagamento da ordem cronológica, respeitadas as preferências dos créditos alimentares e das superpreferências sobre todos os demais créditos de todos os anos. 

O que diz a OAB-BA

O advogado Leonardo Matos, vice-presidente da Comissão de Precatórios da OAB-BA, engrossa o coro das críticas ao gerenciamento dos precatórios na Bahia. Matos disse não ser admissível que o Tribunal tenha o dinheiro e não pague: “a gente não pode de forma alguma, admitir que o TJ tenha o dinheiro, mas seja incapaz de efetuar os pagamentos em um tempo razoável e com eficiência. Como é que você tem o mais difícil, que é o dinheiro, mas você não consegue executar aquele dinheiro, não consegue fazer os pagamentos de uma forma eficiente, num tempo razoável? A gente não tem como admitir isso”.

Matos, inclusive, reclama que o assunto não é tratado como prioridade dentro da Corte: “Apesar de o TJ-BA não dar à Comissão nenhum tipo de justificativa por esse atraso, no sentir dos membros da Comissão e da discussão que temos com outros advogados, o Núcleo de Precatórios nunca foi uma prioridade nas gestões dos tribunais, e aqui na Bahia não é diferente. Ele até se aparelhou um pouco se compararmos com dez anos atrás, mas muito mais por uma pressão do CNJ do que por um ato deliberado de querer moralizar os precatórios. E aqui a gente precisa registrar que, em que pese o grande esforço dos servidores do Núcleo, que temos que reconhecer, a estrutura é muito arcaica. A maior parte dos processos ainda é física, com sistemas de cálculo e pagamento completamente ultrapassados, com quase nenhuma ferramenta de automação das rotinas”. 

O advogado exemplifica de que forma a estrutura obsoleta prejudica o pagamento dos precatórios: “você imagina o tempo que leva para o magistrado assinar 300 ou 400 alvarás, quando isso podia ser resolvido com um clique, com assinatura em lote através do certificado digital. Inclusive, é uma forma muito mais segura. Então, essa ausência de tecnologia, de automação das rotinas, atrapalha demais todo o funcionamento do Núcleo, e acaba subaproveitando o valoroso trabalho de seus servidores, que poderiam estar fazendo atividades mais relevantes, mais significativas. Os precatórios mais novos já são no PJe, processo judicial eletrônico, mas a grande maioria é de precatórios físicos”. 

Leonardo Matos é incisivo ao afirmar que a demora no pagamento dos precatórios tem como consequência a violação de direitos fundamentais. “O precatório é justamente a efetivação do direito reconhecido àquele que foi vitorioso em uma ação judicial movida contra o ente público. Não adianta você ganhar o processo, ter o direito reconhecido pelo poder judiciário, mas não receber o que você está buscando. A falta de pagamento dos precatórios com certeza viola os direitos fundamentais de acesso à Justiça e de efetividade da jurisdição.

A Comissão de Precatórios da OAB-BA tem agido, inclusive junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para minorar os prejuízos, informa o vice-presidente. “Temos promovido reuniões periódicas para discutir esses problemas relacionados aos precatórios e temos, sempre que necessário, oficiado ao TJ-BA buscando soluções e também respostas aos referidos problemas. E chegamos algumas vezes até a provocar o próprio Conselho Nacional de Justiça, como fizemos recentemente, para que ele exerça o controle administrativo que é de sua competência”.

O advogado vai além: “Aprovamos a minuta e apresentamos o ofício ao presidente do TJ-BA buscando essas informações e pedindo a ele que promova o pagamento dos precatórios, especialmente os da ordem cronológica, com esse recurso que já está em caixa”.

Núcleo de Precatórios explica dificuldades

Césare explicou ao BNews que um dos entraves para o pagamento mais célere dos precatórios da lista da ordem cronológica são alguns valores altos. “O estado não paga por precatório, paga por valor. Para você ter uma ideia, no ano passado o segundo da lista cronológica que eu paguei o valor era R$ 130 milhões. O estado não me paga R$ 130 milhões mês. Digamos que ele paga R$ 20 milhões, eu gasto R$ 10 milhões para pagar a lista preferencial e guardo o resto. Vou guardando até que eu tenha os R$ 130 milhões para pagar o precatório. Então, hoje nós temos quase 11 mil precatórios no estado da Bahia. Pela Constituição, o estado tem até 2029 para pagar esses 11 mil. Ele vai pagando mensalmente e eu vou pagando. Só que eu não posso pegar o dinheiro que está depositado e pagar R$ 14,5 milhões para o primeiro da lista. Eu tenho esse dinheiro, mas tenho que pagar os 49 superpreferenciais que estão na frente. Aí depois que eu pagar (os superpreferenciais), se sobrar R$ 14,5 milhões e não entrar mais nenhum preferencial, aí eu vou e pago (o primeiro da lista)”. 

Mensalmente, após mudanças em decorrência da Emenda à Constituição, o estado da Bahia repassa aproximadamente R$ 23 milhões por mês para o pagamento da lista cronológica. “Só que desses R$ 23 milhões tenho que repassar uma parte do TRT e uma parte da Justiça Federal, o que sobra é uma média de R$ 18 milhões. Aí eu vou pagando as preferências. Ano passado nós pagamos dois precatórios da lista cronológicas que juntos foram de quase R$ 180 milhões. Para você ter uma ideia, o oitavo precatório é R$ 162 mil reais, só que antes de pagar ele eu tenho que pagar quase R$ 100 milhões de outros precatórios”, salientou.

Questionado sobre quanto há, atualmente, na conta do TJ-BA para pagamento de precatórios, o juiz disse que se trata de um dado “complicado”: “Eu tenho hoje cerca de R$ 90 milhões, mas não significa que eu tenho esse valor todo disponível porque há milhões em ordens de pagamento já emitidas e não debitadas da conta. E como isso é muito dinâmico, não dá para parar esperar compensar todas as ordens de pagamento para saber o real valor”. Esse valor informado durante a entrevista não condiz com o que consta na decisão publicada no DPJ, em abril deste ano, pelo próprio juiz, que estimava o valor de R$ 532.124.557,93 depositados em contas vinculadas para pagamento de precatórios. 

O magistrado afirmou, ainda, que não há um culpado pelo fato de os credores não serem pagos em um tempo razoável. “Não tem culpa, não tem o que resolver. Está pagando. Teria que mudar a Constituição, que determinou o prazo. A Constituição, o parlamentar estabeleceu o direito de parcelar até 2029. Se você me perguntar qual solução eu posso dar, é nenhuma”. Mas assegurou que, ao que tudo indica, os pagamentos serão feitos dentro do prazo estipulado: “Se os estados honrarem seus compromissos e pagarem com regularidade, sim, é viável. Agora, se deixar de pagar e aí pressionar politicamente para uma nova mudança, aí é a política na qual não tenho como impedir. Hoje, pelo sistema atual, fecha em 2029”.

Tecnologia ultrapassada

O magistrado também falou ao BNews sobre as críticas relacionadas à tecnologia obsoleta do Núcleo. O juiz reconheceu o atraso, mas reiterou que mudanças estão sendo feitas. “Hoje, por exemplo, já trabalhamos com o precatório eletrônico. Hoje, qualquer precatório já não é mais físico, já é eletrônico porque as intimações são mais rápidas. Há uma promessa de digitalizar todos os processos físicos, mas tem enfrentado problemas por conta dessa pandemia. Essa pandemia tem sido caótica. Não quero rasgar sardinha para minha turma não, mas temos feito milagres. Antigamente os precatórios eram pagos via alvará físico, hoje ainda não assinados, mas a gente manda a ordem de pagamento para o banco. Estamos longe do ideal na parte tecnológica, mas já avançamos muito e estamos, posso te assegurar, num nível muito melhor do que outros estados”, destacou.

CNJ aponta necessidade de “adequações pontuais”

Citado pelo vice-presidente da Comissão de Precatórios da OAB-BA, o CNJ foi procurado pela reportagem. Segundo o Conselho, não existe nenhum processo tramitando acerca de problemas relacionados ao pagamento dos precatórios na Bahia. “A despeito disso, o órgão pode atuar quando provocado pelas partes interessadas ou mesmo de ofício, quando da realização de inspeções e correições nos Tribunais brasileiros. Com o advento da pandemia, esse trabalho de inspeção e correição foi suspenso presencialmente. Informamos que a última fiscalização realizada no TJBA em que se visitou o setor de precatórios foi em dezembro de 2019 (de 9 a 13). Não consta do relatório informação sobre valores depositados e pendentes de liberação aos credores, seja em montante global, seja em termos de tempo/prazo do depósito. Também não foram apontadas irregularidades graves, apenas necessidades de adequações pontuais, principalmente tendo em vista que, à época, havia sido recém-publicada a Resolução CNJ nº 303 (que trata da expedição, tramitação e pagamento dos precatórios e requisições de pequeno valor)”.

Em resposta a um questionamento da reportagem, o CNJ afirmou que, caso seja constatada alguma irregularidade, o presidente do TJ-BA ou qualquer outro investigado pode ser responsabilizado: “Em tese, após ampla e detalhada investigação, respeitados o devido processo legal e a ampla defesa, havendo comprovação de irregularidades, qualquer investigado pode ser responsabilizado”. Por fim, o CNJ salientou “que os valores que estão em depósito judicial a título de precatório, não retornam ao ente devedor. Ao contrário, rendem juros e correção monetária até que sejam pagos ao credor”.

A despeito da negativa do CNJ acerca de qualquer procedimento relacionado ao Núcleo de Precatórios do TJ-BA no órgão, o BNews apurou que a OAB-BA ajuizou, em abril de 2021, procedimento de Controle Administrativo questionando a metodologia de elaboração do Plano de Anual de pagamento de precatórios do Estado da Bahia.

Enquanto parlamentares, através de Emenda à Constituição, acabaram por prejudicar a vida de credores que estavam na lista de precatórios, a ineficiência dos tribunais, sobretudo por falta de pessoal, tecnologia e, segundo os entrevistados, de boa vontade, torna esses problemas ainda mais crônicos. A solução para a questão dos precatórios vem sendo adiada há pelo menos 50 anos. Diversas emendas constitucionais adiaram e burocratizaram o pagamento dos precatórios. O Estado tem que se submeter a lei e, desta forma, às decisões do poder judiciário. Quando se furta a esse dever, se torna latente a violação de direitos fundamentais.

Classificação Indicativa: Livre

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