Justiça

Desembargador investigado por trabalho escravo usou ‘manipulação psicológica’ para vítima retornar à sua casa

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Mulher viver em situação análoga à escravidão por quase 40 anos  |   Bnews - Divulgação Divulgação

Publicado em 14/12/2023, às 12h47   Cadastrado por Bernardo Rego


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O desembargador Jorge Luiz de Borba e sua esposa Ana Cristina Gayotto de Borba são investigados por manter uma trabalhadora doméstica em condição análoga à escravidão. Sônia Maria de Jesus, de 49 anos, foi resgatada e conduzida a um abrigo a fim de ter um tratamento digno. 

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Sonia, que vivia na casa de luxo do casal desde os 9 anos de idade, foi resgatada após uma denúncia anônima. Sua saúde bucal estava deteriorada e ela sofria com um tumor no útero. As investigações apontaram que trabalhava como doméstica sem salário nem descanso, dormia em um quarto mofado e foi privada de educação e documentação pelos quase 40 anos. As informações são do portal Intercept Brasil. 


Em maio, o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Mauro Campbell Marques, requereu “a pronta atuação da autoridade policial no cumprimento da ordem” para que Sonia Maria de Jesus pudesse “finalmente desfrutar de uma liberdade que jamais teve em toda sua vida” se, de fato, fosse comprovada a condição análoga à escravidão.


Marques considerou indícios de trabalho forçado ou extenuante, pago com moradia e alimentação, e de aprisionamento da vítima. “A absoluta ausência de qualquer pagamento pelo trabalho doméstico desempenhado, somada à impossibilidade de se comunicar com terceiros, privando-a de qualquer contato social em razão de não ter aprendido a linguagem brasileira de sinais, concorreram fortemente para o aprisionamento da vítima ao local de trabalho”, afirmou.


Laudos a que o Intercept teve acesso apontam que a condição para que Sonia voltasse para casa – sua vontade inequívoca – não foi cumprida. Laudos do Ministério Público do Trabalho revelam uma suposta “estratégia de pressão e manipulação psicológica” adotada pelo casal Gayotto de Borba.


Em 23 de outubro, o casal foi denunciado pela Procuradoria-Geral da República pelo crime de manter a trabalhadora em regime análogo à escravidão. O órgão também já sustentou a necessidade de afastar novamente a mulher dos investigados, alegando ilegalidade na decisão que permitiu a retomada do convívio. Sonia, no entanto, continua vivendo com a família. 


Em 4 de setembro, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal por meio de um pedido de habeas corpus apresentado pela Defensoria Pública da União contra a decisão do ministro do STJ que liberou a visita do desembargador e de sua família ao abrigo. O objetivo era evitar qualquer contato dos investigados com a mulher durante as investigações.


Para a Defensoria, a proximidade do “perpetrador da violência” à vítima não apenas contraria as determinações legais decorrentes do resgate, mas também transgride o Estatuto da Pessoa com Deficiência e a Lei Maria da Penha, já que os investigados conseguiram acesso a um abrigo destinado a mulheres vítimas de violência. Mas o ministro do STF André Mendonça manteve a decisão e autorizou a visita. 


Naquele 6 de setembro, o desembargador Jorge de Borba e sua esposa, Ana Gayotto de Borba, chegaram ao abrigo em Florianópolis por volta das 9h da manhã. A autorização judicial previa a visita dos investigados acompanhados apenas da defesa. O casal estava com uma comitiva de 10 advogados, sendo cinco com o sobrenome “de Borba”.


Estavam ali o irmão, a cunhada, dois sobrinhos do desembargador e a filha do casal, a advogada Maria Julia Gayotto de Borba, que é pós-graduanda em Direito das Minorias e Inclusão Social na Faculdade Cruzeiro do Sul. O neto adolescente também participou, juntamente com outros familiares, além de uma empregada doméstica da família e uma funcionária de cartório. 


De acordo com os procuradores, a conduta manipuladora durante a visita à vítima resgatada teria configurado ainda “flagrante violência contra ela”, classificada nos termos da Lei Maria da Penha como violência psicológica. 


Os procuradores destacam que “tudo se insere em uma estratégia pensada de manipulação e controle psicológicos, típicos de relacionamentos abusivos”. Eles explicam que há ainda o domínio psicológico pelos laços afetivos distorcidos, típico do escravagismo, que se manifesta pelo “temor reverencial em relação ao empregador”, e pela dificuldade de confrontar a exploração. 


Conforme os representantes do MPT, a capacidade de tomada de decisão de Sonia, essencial para compreender adequadamente o encontro com os investigados, teria sido sistematicamente burlada por atos contumazes de desrespeito, violações escancaradas a determinações judiciais, estratégias de manipulação psicológica e abusos que “saltam aos olhos”. 


Como estratégia, a defesa utiliza um laudo psiquiátrico, de 23 de setembro, assinado pelo médico perito Paulo Blank, nomeado pela 2ª Vara da Família e Órfãos da Comarca de Florianópolis. O laudo atesta que Sonia possui deficiência intelectual moderada, necessitando de auxílio para suas atividades diárias. O perito afirma que a incapacidade é absoluta e destaca o vínculo afetivo positivo com o requerente da ação judicial. 


A Defensoria contesta. “Se ela é incapaz de manifestar vontade, nunca poderia ter voltado para a casa dos investigados”, afirma William Charley. Na avaliação do defensor público, o laudo tenta comprovar a inexistência de uma relação de trabalho com Sonia. “Tentam provar que ela não tinha como trabalhar, porque não tinha capacidade de obedecer ordens, para provar que ela não era empregada”, afirma.

Classificação Indicativa: Livre

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