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Entendendo a economia: o escândalo Facebook/Cambridge Analytica é “somente” a ponta de um iceberg

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Como sabemos, 87 milhões de usuários do Facebook, dos quais 443 mil são brasileiros, tiveram seus dados pessoais violados pela Cambridge Analytica  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 08/05/2018, às 18h16   Elizabeth Oliveira e Pedro Sampaio


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O recente escândalo envolvendo o Facebook e a Cambridge Analytica, revelado em 17 de março deste ano pelos jornais The Observer e The New York Times, sinaliza a existência de uma grande economia baseada na comercialização de dados pessoais. O escândalo levou o CEO da mencionada rede social, Mark Zuckerberg, a depor no congresso americano, levantando controvérsias sobre a monetização da perda de privacidade no contexto da era digital. 

Como sabemos, 87 milhões de usuários do Facebook, dos quais 443 mil são brasileiros, tiveram seus dados pessoais violados pela Cambridge Analytica, uma polêmica empresa britânica de consultoria política, numa campanha que visou influenciar de forma espúria as últimas eleições presidenciais norte-americanas a favor de Donald Trump, praticando uma nova espécie de manipulação política, muito mais incisiva e personalizada.

A Cambridge Analytica, que trabalhou não apenas para Trump, mas também em diversos outros países, incluindo a campanha pelo Brexit (saída do Reino Unido da União Europeia), anunciou no último dia 2 o seu fechamento, evidenciando que as repercussões do caso não foram nada desprezíveis (as notícias mais recentes mostram a continuação de suas atividades em outra empresa chamada Emerdata). 

Infelizmente, essa história do Facebook/Cambridge Analytica está muito longe de ser um caso isolado. Na verdade, precisamos nos dar conta de que esta gigantesca violação de dados pessoais é “somente” a ponta do iceberg de uma nova e abrangente economia da informação sustentada por um processo de digitalização de todas as atividades humanas possíveis, possibilitando, com isso, a vigilância, governo, captura e mercantilização da privacidade em larga escala. Os dados pessoais tornaram-se economicamente tão valiosos que não é raro serem referidos como o “petróleo do século XXI” ou, ainda, como um dos recursos mais estratégicos do mundo atual, o que pode ser conferido, por exemplo, numa das edições de maio de 2017 da revista The Economist e no relatório do Fórum Econômico Mundial de 2011. 

Os players que atuam nesses mercados de dados pessoais compõem uma considerável cadeia de valor da informação que vão desde grandes transnacionais do Vale do Silício até empresas de varejo tradicional nos países dependentes, como o Brasil. 

Mais especificamente, seus participantes são: as maiores multinacionais digitais do mundo, como Google, Amazon, Facebook, Apple, Uber e Microsoft; as não muito conhecidas, porém poderosas corretoras de dados (data brokers), como Acxiom e Experian (controladora do Serasa); empresas de aplicativos dos mais diversos tipos (notícias, saúde, fitness, música, negócios, games etc); empresas que fornecem infraestrutura digital para outras empresas na forma de serviços; e, ainda, empresas de ramos diversos, como farmácias, supermercados, companhias aéreas e bancos.

No caso do Google e de outros grandes monopólios digitais globais e das corretoras de dados (como a controladora do Serasa), o objetivo é armazenar a maior quantidade de informações disponíveis de cada indivíduo, adquirindo assim total conhecimento do público alvo para a realização de um determinado serviço. O CEO do Facebook admitiu em depoimento ao congresso americano que sua rede social armazena toda e qualquer informação que julgue relevante para fornecer um serviço de publicidade direcionada aos seus anunciantes. Isto é, qualquer postagem ou publicação realizada por um usuário do Facebook que indique determinado padrão de consumo, nível de renda, preferência política, atividades de lazer, dentre outros, provavelmente será utilizado como parâmetro para definir quais anúncios aparecerão na timeline deste usuário.

Na verdade, a mercantilização da privacidade é um fenômeno que transcende as redes sociais. Os “produtos” da atividade de vigilância com fins de comercialização são “fabricados” a partir da combinação, tratamento e análise de uma extensa gama de informações digitais e digitalizadas, tanto de origem online quanto offline, e que abrangem desde dados de navegação na internet até dados biométricos, médicos e genéticos, passando por informações comportamentais, de saúde, de geolocalização, de compras em lojas físicas ou virtuais, posicionamentos políticos, orientação sexual e crenças religiosas. Muitos dispositivos estão a serviço da vigilância: smartphones, computadores, satélites, equipamentos médicos, sensores, cartões de crédito etc.

É verdade que não dá pra negar que as tecnologias digitais facilitaram enormemente um sem número de atividades cotidianas, tais como as comunicações interpessoais, informações sobre o trânsito e previsão do tempo, transações bancárias, o acesso às notícias, o diagnóstico de doenças por meio da inteligência artificial, viagens, pesquisas escolares, o comércio etc. Mas o tamanho e a variedade dos problemas atrelados a essas mesmas funcionalidades são grandes demais para serem ignorados. Quanto”, em termos de perda de liberdade individual e coletiva, estamos dispostos a “pagar” por essas facilidades?

Pesquisas no Google sobre doenças ou medicamentos e o fornecimento de CPF nas farmácias para receber descontos são algumas das inúmeras formas possíveis de se identificar pessoas com doenças crônicas, graves ou com algum transtorno mental, como ansiedade ou depressão, o que pode levar, num futuro próximo, os planos de saúde a discriminarem preço com base nos dossiês digitais dos indivíduos ou o RH das empresas a eliminarem candidatos a empregos. 

Por outro lado, os bancos de dados possuem uma inevitável vulnerabilidade a crimes cibernéticos. Não existe informação digitalizada que esteja 100% a salvo de ataques, roubos e sequestros de dados com extorsão monetária virtual. São frequentes as notícias sobre esses tipos de crimes: vazamentos de dados de clientes de lojas virtuais e de serviços digitais, sequestro de arquivos médicos, invasão de contas bancárias e mais uma quantidade de outros crimes que seria impossível listar neste espaço. 

Além dos problemas econômicos e da vulnerabilidade aos crimes, existe a contradição elementar entre economia de dados e democracia. O caso Facebook/Cambridge Analytica evidencia que a manipulação política já não é apenas uma mera possibilidade. Além disso, a digitalização da vigilância é também uma questão altamente estratégica do ponto de vista geopolítico e de segurança nacional para diversas instâncias do Estado norte-americano: existe um verdadeiro complexo militar-digital que atua a favor do fortalecimento das corporações monopolistas dos Estados Unidos que comercializam informações pessoais.

Há um debate regulatório importante, inclusive aqui no Brasil, que aborda parte dos desafios aqui expostos. Dois Projetos de Lei (PL) vem sendo discutidos no Congresso (PL 5276/2016 e 330/2013) visando criar uma lei geral de proteção de dados pessoais no país. A relevância desse debate é indiscutível, especialmente se considerarmos a atual ausência de leis específicas nesse sentido. 

No entanto, é preciso reconhecer os limites da regulação. Não podemos subestimar as forças que dinamizam essa economia da informação baseada em dados pessoais, já que elas representam alguns dos principais pilares do capitalismo contemporâneo, quais sejam: o capital financeiro e o investimento em marketing do qual depende com especial vigor o capital monopolista. Seja para fazer uma melhor gestão de risco de crédito ou para conhecer e moldar as preferências dos consumidores, os dados dos indivíduos são altamente demandados por setores que ocupam um espaço central no capitalismo contemporâneo. 

O que não podemos perder de vista é a ideia de que as tecnologias digitais (e quaisquer outras) não são neutras; neste caso, mais do que nunca, elas são desenvolvidas para servir prioritariamente ao mencionado complexo digital-militar e ao grande capital financeiro.

* Elizabeth Oliveira - Pesquisadora  do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Faculdade de Economia - UFBA. Pós-doutoranda em Economia na Universidade Federal da Bahia (UFBA), Doutorado, mestrado e graduação em Economia, na UFBA. Membro do Grupo de Estudos em Economia Política e Desenvolvimento (GEPODE/UFBA) e do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC/UFBA).

* Pedro Sampaio - Pesquisador  Do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC) da Faculdade de Economia - UFBA. Graduando em Economia pela Faculdade de Economia da UFBA. 

Classificação Indicativa: Livre

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