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Furacão Maria provocou milhares de mortes a mais em Porto Rico que o divulgado

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Estudo de Harvard aponta que houve mais de 4.000 mortos, ante 64 de estimativa oficial  |   Bnews - Divulgação Hector Retamal /AFP

Publicado em 30/05/2018, às 07h32   Folhapress


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Depois de sofrer pressão do Congresso e de análises estatísticas de organizações noticiosas, que situavam o número de mortes acima de mil, Rosselló pediu a ajuda de especialistas da Universidade George Washington para revisar o processo de certificação de óbito do governo. 

Ele prometeu que, "independentemente do que diga a certidão de óbito", cada morte seria inspecionada de perto para garantir uma contagem certa."Isso não são apenas números, são vidas: pessoas reais, deixando para trás seres amados e famílias", disse Rosselló em uma entrevista coletiva no final de fevereiro.

Lynn Goldman, reitora da Escola de Saúde Pública do Instituto Milken, na Universidade George Washington, espera que um relatório inicial seja divulgado nas próximas semanas. 

As conclusões da escola incluirão a primeira tentativa patrocinada pelo governo para que pesquisadores e epidemiologistas quantifiquem a mortandade do furacão Maria. 

Especialistas estão avaliando dados estatísticos de mortalidade e pretendem mergulhar em registros médicos e entrevistas a famílias dos mortos, embora o âmbito e o financiamento da investigação mais profunda ainda não estejam claros, assim como seu momento.

Alguns casos são obviamente relacionados à tempestade, disse Goldman, como alguém que morreu quando um galho de árvore caiu sobre sua cabeça enquanto limpava destroços, ou alguém que sofreu um infarto durante a tempestade e não conseguiu ajuda. 

Mas as certidões de óbito com a frase "causas naturais" exigirão mais investigação. 

O Centro para Jornalismo Investigativo em Porto Rico foi à Justiça na tentativa de conseguir os dados de mortalidade do departamento de saúde e registro demográfico para os meses a partir de novembro, o último ano do qual havia informações disponíveis. 

O Instituto de Estatísticas de Porto Rico também anunciou nas últimas semanas que realizaria uma contagem independente e usaria poderes de intimação judicial para obter os dados. 

O porta-voz Eric Perlloni Alayon disse em um comunicado que o governo continua tentando verificar o número de mortos e não pretende divulgar dados novos. 

Os pesquisadores de Harvard relataram que há vários motivos para que o número de mortos em Porto Rico tenha sido drasticamente subestimado. 

Toda morte relacionada a um desastre, disseram eles, deve ser confirmada pelo instituto de cientistas forenses do governo, que exige que os corpos sejam trazidos a San Juan ou que um perito médico viaje ao município local. E pode ser difícil localizar mortes por um agravamento de condições crônicas devido à tempestade.

Os pesquisadores disseram que o governo de Porto Rico parou de divulgar dados de mortalidade ao público em dezembro de 2017.

"Enquanto os EUA se preparam para sua próxima temporada de furacões, seria crítico rever como as mortes relacionadas a desastres serão contadas, para mobilizar uma operação de reação adequada e responder pelo destino dos afetados", escreveram os autores. 

Muitas famílias daqui esperam esclarecimentos sobre o que aconteceu com seus entes queridos quando "causas naturais" se tornaram a única explicação. 

Era o que estava escrito na certidão de óbito de Leon na manhã em que um policial levou o documento à casa da família. 

Yamil Juarbe, do Departamento de Justiça de Porto Rico, disse em um comunicado que é hábito das autoridades locais nesses casos examinar os corpos em busca de sinais de trauma e falar com os parentes para se inteirar do histórico médico dos falecidos. Essa informação é coletada e enviada ao escritório central do Instituto de Ciências Forenses.

A família de Leon disse que seu nome foi escrito errado na certidão de óbito e sua morte foi atribuída incorretamente a diabetes; eles dizem que ela não tinha qualquer doença crônica conhecida. 

As autoridades depois corrigiram os documentos, mas foi uma de várias indignidades e descasos que a família identificou.

A morte de Leon começou com um vírus, e os primeiros sinais apareceram quando ela entregava doações a famílias de escoteiros que tinham perdido suas casas em outra cidade, Humacao. 

Na semana de Ação de Graças, Leon planejava fazer um banquete para sua família, mas sentiu-se adoentada para terminar o peru. Ela temperou a ave e uma padaria próxima a assou. Então os vômitos e a diarreia a atacaram.

Ela buscou tratamento no Auxilio Mutuo, um hospital particular em San Juan, dos poucos que ficaram abertos durante os cortes de energia, por causa de um gerador. O hospital não perdeu serviços de água e eletricidade, segundo a porta-voz Sofia Luqui, e a instalação de 600 leitos experimentou um volume de pacientes acima do normal depois que vários outros hospitais foram obrigados a fechar.

Leon chegou na tarde de 27 de novembro e esperou horas ao longo da noite, até que um médico lhe disse que tinha diverticulite e prescreveu antibióticos. Leon não foi internada, mas passou aquelas horas presa ao equipamento médico na sala de emergência. 

Na tarde seguinte ela foi mandada para casa com uma prescrição de remédios, mas não melhorou. Às 7h do dia seguinte, Montanez disse que seu pai chamou a família à casa porque Leon estava sem fôlego. Levou 20 minutos para conseguir sinal do celular e ligar para 911 de seu bairro na região metropolitana de Caracas. Levou mais dez minutos, segundo registros, para que a ambulância pudesse chegar à casa de Leon, devido ao congestionamentos e a faróis de trânsito defeituosos. 

Os paramédicos tentaram reanimar Leon usando massagem cardiorrespiratória, mas ela já estava morta quando chegaram. Montanez tentou durante dias que fosse feita uma autópsia, mas ela disse que nenhum órgão do governo ou organização médica privada tinha capacidade para isso.

De acordo com seu desejo, Leon foi cremada alguns dias depois em uma cerimônia apressada porque a casa fúnebre foi danificada pela tempestade e enfrentava um grande número de funerais.

"Ninguém estava preparado. Foi um monstro e todos tivemos de improvisar", disse Victor Torres, gerente-geral da Borinquen Memorial em Caguas. "Mas fizemos o melhor possível." 

Montanez fica acordada muitas noites revendo os últimos dias de sua mãe. Ela tenta lembrar a mulher que muitas vezes brincava de modo tão seco, que seus filhos não sabiam quando ela estava falando sério. 

Ela lembra que Leon deu a cada vizinha um apito para pedir ajuda em uma emergência durante o prolongado blecaute em Porto Rico, e como organizou excursões à luz de lanternas para as crianças do bairro pedirem doces durante o Halloween, depois do furacão.

Mas Montanez pensa principalmente na tempestade. Na escuridão. Na falta de serviços. Deveria ter sido diferente, diz. 

"Tudo falhou. Desde o primeiro dia, tudo estava falho", disse Montanez. "Há muitas histórias como a nossa." 

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