Política

É uma humilhação, a minha vida virou um inferno, afirma Guido Mantega

Publicado em 15/05/2017, às 09h03   Redação BNews


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No centro de acusações da Operação Lava Jato, o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega afirma que delatores como Marcelo Odebrecht criaram "ficções" para conseguir fechar delação premiada, inventando histórias "inverossímeis" e sem provas. De acordo com a Folha, Mantega, que foi o mais longevo ministro a comandar a economia do país, de 2006 a 2014, diz que "estava atrapalhando" os planos do empreiteiro, em 2009, ao defender o veto a uma lei que dava à Odebrecht anistia sobre débitos tributários. E que essa seria a prova "cabal" de que não dava "moleza" ao empresário em troca de recursos para campanhas eleitorais. O ex-ministro quebrou um silêncio de quase três anos e concedeu à Folha, na semana passada, em SP, a primeira entrevista desde que deixou o Ministério da Fazenda.
Aos 68 anos, casado com Eliane, 56, que desde 2011 enfrenta tratamento contra um câncer no intestino, disse que tem medo de ser preso. E afirmou esperar que "a Justiça faça justiça".
Folha - O senhor foi preso no ano passado, acusado de ter pedido ao empresário Eike Batista R$ 5 milhões para saldar dívidas de campanha.
Guido Mantega - Eu fui preso e fui solto em seguida. Depois disso, nunca mais fui chamado [pelas autoridades].  Eu não tinha a menor ideia do que se tratava. Sempre tive um relacionamento distante com o Eike. Estava cuidando da minha mulher [Eliane], que tem um câncer com metástase e faz todos os tratamentos possíveis, com quimioterapia, radioterapia, e que neste dia faria uma cirurgia. Nós tínhamos entrado no hospital [Albert Einstein, em SP] às 5h. Eram 7h quando recebo um telefonema da minha casa dizendo que a polícia estava lá, com o meu filho de 15 anos. A Eliane estava indo para a sala cirúrgica. Liguei para a minha irmã, "alguém tem que vir aqui ficar com ela."  Eu pensava que seria conduzido para prestar depoimento. Aí me avisaram que era mandado de prisão. O delegado da PF [que comandou a operação] tinha sido da minha segurança pessoal. Aliás, me trataram muito bem. E ele falou "faz a mala, reúne as coisas". Sabe o que é uma entrada da polícia às 6h da manhã na sua casa, inesperadamente? É um choque porque eles pegam testemunhas entre os vizinhos, pegaram até na padaria. É uma desmoralização. Você imagina o vexame, na sua casa, um monte de jornalista, "tá sendo preso". O juiz Sergio Moro acabou revogando a prisão.
Eu estava lá [na sede da PF, em SP], esperando a vinda do avião que nos levaria a Curitiba. Ao meio-dia, o delegado diz "acho que teremos boa notícia. Você vai ser solto". Havia reação forte, as pessoas estavam indignadas [por Mantega estar preso enquanto a mulher fazia cirurgia]. A Eliane tá nessa luta. Ela toma agora uma quimioterapia muito forte para tentar controlar [o câncer]. A pessoa precisa de apoio moral para não desistir desses remédios. No final de 2016, ficamos 51 dias no hospital. Descobrimos o câncer há cinco anos, em 2011.
Folha - Nessa época o senhor quase saiu do governo, não é?
Guido Mantega -Pois é. Deveria ter saído. Teria sido bom para mim. Ou pelo menos para a família. Não existiria nada disso. Mas não dá para recuperar o leite derramado.
Folha -  O senhor se arrepende?
Guido Mantega - Eu me arrependo. Embora nós tivéssemos um projeto importante para o país. A economia crescia como nunca, com melhoria da condição de vida da população, aumento extraordinário do emprego, as empresas faturando. Era difícil eu sair naquele momento. 
Folha - Delatores relatam que, no período, houve negociações com o senhor para doação de dinheiro em troca de benefícios do governo. Começa por Emílio Odebrecht, que diz ter pedido a Lula que desse "um alô" ao senhor para destravar um Refis [programa que permite às empresas regularizarem dívidas com tributos].
Guido Mantega - Eu estava atrapalhando os planos deles. Eu não estava ajudando. Eu tenho que explicar e vai ficar tudo claro.  Em 1969, uma lei permitiu que as empresas exportadoras se creditassem de IPI [Imposto Sobre Produtos Industrializados], para estimular as exportações. Esse benefício deveria vigorar até 1990. Mas elas recorriam à Justiça e ganhavam, usufruindo do benefício até os anos 2000. Em 2007, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) julgou uma ação validando o crédito apenas até 1990. O pessoal [empresários] ficou desesperado. Eles estavam aproveitando créditos há 17 anos e teriam que devolver tudo com multa e correção. Procuraram o governo: "Se tivermos que pagar, vamos quebrar".
Eles queriam uma lei que reconhecesse os créditos. Uma anistia. E fizeram essa lei: em 2009, colocaram uma emenda numa medida provisória do Minha Casa Minha Vida, no Senado. Articularam apoios, governadores escreveram a Lula para que ele não vetasse a emenda. E o chato do ministro da Fazenda [referindo-se a si mesmo] defendeu o veto. 
Folha -  E o Lula vetou?
Guido Mantega -Vetou. Agora, nós não queríamos quebrar o setor. Em 2008 [um ano antes do veto], tínhamos feito um Refis para combater a crise, permitindo que empresas parcelassem seus débitos. Fizemos então uma complementação que possibilitava que eles [exportadores] pagassem [os débitos do IPI] em até 12 vezes, com alguns descontos. Essa foi a "bondade" que fizemos. Não anistiamos. Essa para mim é a prova cabal de que não demos moleza. Pelo contrário. Fizemos eles pagarem.
Folha - O Lula falou com o senhor sobre o Refis?
Guido Mantega - Lula não falou comigo desse assunto.
Folha -Marcelo Odebrecht conversou com o senhor sobre o Refis?
Guido Mantega -O Marcelo quer dar a entender que ele era o protagonista, mas eu conversei com Gerdau, Vale, todas as grandes empresas exportadoras brasileiras. E também com o Marcelo.  E desde quando Refis é bondade para um segmento? O Refis é para milhares e milhares de empresários.  Ele diz que, na negociação do Refis, em 2009, o senhor entregou "um papelzinho" com pedido de R$ 50 milhões. Isso não ocorreu. É mentira do Marcelo. Ele é um ficcionista. Ele criou uma história. E ela é totalmente inverossímil, pelo que já te mostrei.
Folha - Mas por que ele, que se mentir perde os benefícios de uma delação premiada, inventaria isso contra o senhor?
Guido Mantega - Porque, para você conseguir uma delação, tem que entregar pessoas do alto escalão do governo. Um ou dois presidentes [da República] e um ou dois ministros. De certa forma é uma exigência. E aí fala do ministro sem provas. Porque não faz sentido essa questão do Refis.
E menos ainda R$ 50 milhões que diz que pedi num bilhetinho. Que bilhetinho? Mostra o bilhetinho! Ele tinha que montar uma história para dizer que tinha propina e inventou essa. Mas foi infeliz porque esse Refis foi feito para Deus e o mundo.  Ele diz que os R$ 50 milhões ficaram como crédito na conta "Italiano", apelido do Palocci, que administrava esse caixa. E que em 2014 o dinheiro foi gasto na campanha da Dilma. Por que não usamos esse crédito em 2010, quando a campanha acabou com uma dívida de R$ 17 milhões? Esse crédito foi transferido para 2014? Eu nunca vi um crédito dessa natureza. É da cabeça dele. E ele diz que em março de 2014 o crédito já era de R$ 150 milhões. Acrescentam R$ 100 milhões.
Folha - Marcelo Odebrecht diz que, depois que Palocci sai do governo, em 2011, Dilma indicou o senhor como interlocutor. E afirma que falou a ela sobre pagamentos que vinha fazendo ao Palocci. 
Guido Mantega - De fato eu era o interlocutor do empresariado. Era ministro da Fazenda e 50% do meu tempo era dedicado a reuniões com empresariado, a seminários, almoços, jantares.
Folha - Ele fala que passou a ter uma agenda intensa com o senhor. E que o senhor teria dito que criou-se uma expectativa de colaboração de R$ 100 milhões para campanhas. 
Guido Mantega -Tivemos inúmeras reuniões sobre várias questões. De fato, em algumas delas, ele manifestou o desejo de contribuir. Partiu dele. Havia uma certa animosidade entre ele e a Dilma. O Marcelo foi derrotado várias vezes e não gostava do governo. Eu acho que queria sinalizar para a Dilma que estava ajudando.
Folha - E como o senhor reagiu?
Guido Mantega - Eu falei: "Acho bom que você contribua, desde que oficialmente e pelos canais competentes. Não sou eu que trato dessas questões". 
Folha - Ele afirma que o senhor escrevia num papel "V está precisando". V seria João Vaccari, então tesoureiro do PT. Cita ainda pagamentos para o marqueteiro João Santana.
Guido Mantega - Se eu expus isso num papel, por que ele não trouxe o papel? Porque não tem prova nenhuma. O que ele fala não tem sentido e não tem prova. Se você ler as declarações dele, vai ver que é tudo flutuante. Selecionei várias frases [mostra um caderno com anotações sobre os depoimentos de Odebrecht e outros]. 
Folha - Mônica Moura, mulher e sócia de João Santana, diz que também tratava com o senhor sobre pagamentos para a campanha eleitoral. 
Guido Mantega - Eu dialogava com a Mônica e com o João Santana. Eles eram marqueteiros das campanhas do PT desde 2006, e eu era ministro da Fazenda desde 2006. Algumas vezes a Mônica me abordou. Ela se queixava: "Tá faltando dinheiro". Eu respondia: "Fala com o tesoureiro do partido. Eu sou o ministro da Fazenda, eu cuido da economia do país e não dessa questão". A razão dela [para fazer as afirmações] é a mesma, a meu ver, do Marcelo. Ou seja, para fazer uma delação ela precisava entregar alguém de importância.
Folha - Quais foram os impactos da prisão e das denúncias?
Guido Mantega -  Eu me sinto terrível porque minha reputação foi colocada por água abaixo. A repercussão foi péssima, péssima. passei a ter problemas em restaurantes, no hospital. Não posso ter uma vida normal. É uma humilhação ser chamado de ladrão. Eu poderia ter começado a dar palestras, consultorias. Criei um nome lá fora, fiz o Brasil ser respeitado. E acabei jogado nessa vala. A essa altura dos acontecimentos, depois de trabalhar tantos anos para o governo, depois de ter tantos resultados, eu não esperava. Realmente eu não esperava.
Folha - O que o senhor tem feito?
Guido Mantega - Tenho feito projetos na FGV, mas é só um trabalho interno. Não estou dando aula. Participo de seminários fechados, pequenos. 
Praticamente perdi a minha reputação, com mentiras, diga-se de passagem, seja na área econômica, seja nessa questão. A minha vida virou um inferno. 

Folha - E o senhor teme algum dia ser condenado e preso, desta vez para cumprir pena?
Guido Mantega - Sim, tenho temor. Eu sou a principal pessoa que cuida da minha mulher, que dá sustentação psicológica para ela. Temo o que aconteceria com ela se eu fosse preso. Se você olhar as acusações, as provas, elas são frágeis, não se sustentam. Eu espero que a Justiça faça justiça.

Classificação Indicativa: Livre

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