Política

Entenda o mandato coletivo e a lacuna jurídica que tem causado polêmica nos parlamentos do Brasil

José Cruz/ Agência Brasil
Especialistas explicam quais os problemas no mandato coletivo e opinam sobre a importância dele no sistema democrático brasileiro  |   Bnews - Divulgação José Cruz/ Agência Brasil
Letícia Rastelly

por Letícia Rastelly

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Publicado em 06/04/2023, às 06h30


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Na última campanha eleitoral o Brasil registrou 213 candidaturas coletivas. Essa prática, existente no país desde década de 1990, tornou-se realidade em 2016 e vem se expandindo desde então. Entretanto, apesar do aumento expressivo daqueles que almejam uma cadeira compartilhada no parlamento e também daqueles que votam em prol desse tipo de candidatura, não há, ainda, nenhum amparo legal que dê plenos poderes ao que podemos chamar de co-vereadores.

Acontece que apesar de uma resolução ter sido aprovada no ano passado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que prevê a possibilidade da campanha ter a menção a esse coletivo, quem registra, é diplomado e assume oficialmente o mandato é uma dessas pessoas- a que aparece na urna eletrônica, ao votar. A medida, que teve como relator o ministro Edson Fachin, é vista como um avanço para aqueles que pleiteiam vagas desse tipo no parlamento brasileiro e, inclusive, como um reconhecimento da modalidade. Entretanto, acaba deixando esse tipo de candidatura ainda mais confusa para a grande maioria da população que desconhece o assunto, podendo, inclusive, acreditar que ao ver o nome do coletivo sendo divulgado, significa que todos que o compõem irão realmente assumir a cadeira.

Tudo isso acontece porque os mandatos coletivos não são ilegais no Brasil, mas também não possuem nenhum tipo de amparo jurídico, já que também não há nada legalizando ou o regulamentando. O promotor de Justiça Millen Castro, que coordena o Núcleo de Apoio aos Promotores Eleitorais do Ministério Público da Bahia (MPBA), explica que “essa é uma daquelas situações em que ‘a vida é muito mais do que o direito’, porque o direito prevê alguma causa restrita, mas existem situações que vão acontecendo e mudam o direito”. Ou seja, se trata de uma novidade, não prevista pela legislação, mas que acaba levando a um debate que pode promover uma mudança, tanto no processo eleitoral, quanto nos próprios.

Pessoalmente o promotor avalia como positivo esse tipo de mandato, já que há ali uma maior transparência com relação as diretrizes que serão seguidas pelo político eleito, já que atualmente muitos são “aconselhados” extraoficialmente por aqueles com quem ele tem ligação política. “Considero que é um avanço político, mas isso precisaria de um reconhecimento, uma legalização para que haja mais poderes para as outras pessoas que cumprem um mandado coletivo. É possível que isso caminhe para um reconhecimento futuro, para que isso se dissemine no país.

O advogado especialista em direito eleitoral, Hermes Hilarião, explica que “a ideia do mandado coletivo é buscar uma aplicação do processo democrático dos espaços políticos e de poder, permitindo que mais pessoas possam exercer aquela missão democrática e constitucional”. Essa modalidade busca dar “pluralidade as casas legislativas e diminuir os interesses particulares”. Entretanto, apesar desse olhar positivo sobre esse tipo de candidatura, o advogado é enfático ao dizer que não se trata de uma situação amparada legalmente.

Hilarão ressalta que é necessário o conhecimento por parte da população com relação a esse assunto, de modo que é importante saber que a “apenas o nome de uma pessoa é submetido ao registro de candidatura e apenas ela terá seu nome e imagem inseridos na urna eletrônica. “Então quando o cidadão vai votar em um grupo de pessoas que está concorrendo a um mandato coletivo, ele vota em um indivíduo que irá representar esse coletivo e ficará responsável pelo cumprimento de todas as normais eleitorais e também relacionadas ao cumprimento do seu possível mandato”, esmiúça o advogado.

Problemática

Mudar uma tradição centenária, sem previsão legal, gera problemas e principalmente muita polêmica. Além do eleitor, que pode se sentir enganado por ver a propaganda de um grupo, mas ter como representante oficial apenas uma pessoa, há ainda as possíveis judicializações de situações específicas. Por exemplo, se se um co-vereador vota em uma sessão, isso pode gerar um pedido de cancelamento dessa votação por um colega edil, que entender que aquela pessoa, por não ser a diplomada, não tem direito a voto, colocando essa decisão no “colo” na Justiça.

Os problemas gerados pelo mandato coletivo podem ser sanados com uma alteração na legislação que pode ser feita pelo Congresso Nacional por meio de emenda constitucional ou projeto de lei. Entretanto, todas essas tentativas já foram feitas por parlamentares nos últimos anos e ainda não foram votadas. Um outro caminho para essa regulamentação seria uma ação direta do Supremo Tribunal Federal (STF) que poderia, inclusive, fazer uma análise com base nas premissas constitucionais.

Além dessas possibilidades, segundo a advogada eleitoral Mariane Almeida Costa, mestre e pesquisadora em candidaturas compartilhados e mandatos coletivos, há ainda uma probabilidade de um possível novo Código Eleitoral, que vem sendo estudado, prever artigos que regulamentem esse tipo de mandato. “Há uma experiência social que está se desenvolvendo, que vai experimentar os avanços e retrocessos, para a partir daí ser criado uma diretriz”, explicitou a advogada, levando em conta que já existem casos onde a estrutura da Câmara Municipal, por meio do seu estatuto, já insere os co-vereadores de modo igualitário, diferente de outros locais. Essa decisão individualizada deixa os mandatos coletivos ainda mais vulneráveis.

Enquanto nenhuma dessas possibilidades se torna uma realidade, um caminho possível para tornar essa modalidade menos nebulosa, seria ter novas resoluções do TSE, por exemplo, registrando a candidatura em nome de todos os componentes do grupo e suas respectivas fotos. Mas vale lembrar que a atuação deste Tribunal é limitada ao processo eleitoral, ou seja, para o mandato conquistado, mudar qualquer coisa depende de um dispositivo legal, que só pode ser obtido através das formas já citadas. Uma coisa é certa: as polêmicas em torno desse tipo de mandato o torna ainda mais evidente e pode acabar dando uma maior celeridade a uma decisão parlamentar sobre o assunto, seja ela positiva ou não.

Por que existem essas candidaturas?

O primeiro mandato coletivo surgiu na Suécia, em 2002, e foi, aos poucos, ganhando adeptos em outros países. No contexto regional acabou sendo um caminho para os partidos de centro-esquerda e esquerda, que objetivam aumentar a representatividade nos parlamentos, incluindo as chamadas minorias, como mulheres, negros, índios e população LGBTQIAPN+, por meio de acordos pessoais.

Tal construção seria, portanto, uma forma de burlar o sistema, que, segundo a mestre Mariane, possuí uma “estrutura enriquecida, onde muitos recebem esses cargos hereditariamente, sendo passado de pai para filho”. “Esses grupos, compostos principalmente por mulheres, se juntam para ter um mandato e lutar pelo espaço de tomada de decisão, além de romper com essas estratégias, já que são pessoas que possivelmente não seriam eleitas”, analisa a especialista, afirmando que essas situações formam uma representação política de pessoas que costumam ser subrepresentadas nos parlamentos.

Para Hilarião, que pessoalmente vê esse tipo de mandato como um caminho importante para a democracia, há embasamento constitucional para regulamentar a modalidade. “A Constituição, em diversas oportunidades, visa ampliar o processo democrático, para que ele seja cada vez mais participativo, sendo que no caso do mandato coletivo há ainda um ônus ao poder público”, opina o especialista, ao citar uma maior pluralidade no parlamento sem onerar a folha com mais um vereador, deputado ou senador e seus respectivos assessores e servidores.

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