Salvador

O projeto do BRT de Salvador está equivocado, afirma especialista

Imagem O projeto do BRT de Salvador está equivocado, afirma especialista
Em entrevista ao BNews, professora critica projeto e diz que é "quase o mesmo custo do metrô"  |   Bnews - Divulgação

Publicado em 11/05/2018, às 11h40   Adelia Felix e Shizue Miyazono



Salvador tem sido palco de diferentes formas de manifestações, protagonizadas por membros da sociedade civil e artistas, que são contra a implantação do Bus Rapid Transit (BRT) na capital baiana. O projeto prevê a supressão de árvores e o fechamento de dois rios para dar lugar a um elevado ligando a Lapa à região da rodoviária.O elevado vai servir como uma via expressa para ônibus articulados e também para carros. 

Nesta semana, o BNews entrevistou a professora do Departamento de Engenharia de Transportes e Geodésia da Escola Politécnica da Universidade Federal da Bahia (UFBA), doutora em engenharia e transporte, Ilce Marília Dantas Pinto. Ao site, a especialista afirmou que a obra, que se configura como a mais cara entre várias capitais brasileiras, vai melhorar a mobilidade da cidade, “mas não precisa ser dessa forma”. “A gente não está dizendo que prefeitura está falando uma mentira, mas não é toda uma verdade”, disse. 

O custo do BRT é estimado entre R$ 68,3 milhões e R$ 117 milhões por quilômetro construído e o investimento previsto é de R$ 820 milhões. “Esse dinheiro de alguma forma vai ser liberado com a justificativa que é BRT, mas não precisa daquele BRT”, afirma a professora.


BNews: O que é o Bus Rapid Transit (BRT)?
Ilce Marília Dantas Pinto: O BRT é um sistema de transporte público, portanto é bom, porque transporte público é melhor para as pessoas, e significa um ônibus de grande capacidade trafegando por uma via exclusiva, o que a gente chama de canaleta ou faixa segregada. Até aí tudo bem. Nós estamos passando por um momento em que o Plano de Mobilidade, que é uma exigência da Política Nacional de Mobilidade, coloca que toda cidade acima de 20 mil habitantes tem por obrigação desenvolver seu plano de mobilidade. E aí, traçados os corredores, transporte público, que pode ser por qualquer modo, de acordo com as necessidades da cidade. Nesse plano, e anteriormente a isso, a prefeitura já tinha planejado um transporte coletivo de média capacidade necessário para esse corredor. Esse corredor tem que ter uma rede, como se fosse um corpo humano, onde você tem as veias mais grossas e as veias mais finas para alimentar. Nós temos o corredor mais forte, de maior capacidade, que é o metroviário, e temos as linhas para alimentar este transporte. Qualquer outro sistema não pode concorrer com este. Porque se você concorre tira a força da função daquele modo. Existe, há muito tempo, um pensamento da prefeitura, e isto está no Plano de Mobilidade, um corredor prioritário fazendo essa ligação, mas não significa que ele não pudesse ser por metrô, BRT ou VLT. 

BNews: Diversas manifestações contra obras do BRT têm ocorrido nos últimos dias. Enquanto especialista, como a senhora avalia o modal? É adequado?
Ilce Marília Dantas Pinto: O que se queixa é o porte deste BRT. E é esse o equívoco. O que está se queixando, e a sociedade tem que discutir, é se esse porte de obra é o que ela quer. E na realidade, esse porte de obras está acima do que é necessário, porque ali têm outras obras embutidas que na realidade não seriam necessárias para um BRT. É como se eu dissesse assim ‘eu preciso comprar um sapato porque estou sem sapato’. E, resolvesse comprar uma calça, uma blusa, uma pulseira, um brinco, tudo muito mais caro do que o sapato. Que eu precisava comprar um sapato eu precisava, eu só preciso do sapato para cobrir meu pé por causa da chuva, mas aí comprei uma calça caríssima, de marca. Têm outras coisas enroladas ali. E uma delas, que é uma coisa valiosíssima para sociedade, que é o patrimônio daquelas árvores. Precisa saber se não poderia ter outra alternativa de projeto de transporte coletivo por BRT mesmo, mas que não tivesse porte, não tivesse impacto. Hoje em dia não se faz tanto elevado. Na realidade, ali está se colocando uma obra também para automóvel e dizendo que era para o transporte coletivo. Então fica uma placa bem grande dizendo ‘ah, o BTR vai melhorar o transporte coletivo’, mas junto com esse BRT tem um monte de coisa lá chamada de BRT. É um BRT com impacto muito negativo.

BNews: Quem é contra o BRT alega a questão ambiental e que vai fazer um trajeto que já é feito pelo metrô. Isso faz sentido?
Ilce Marília Dantas Pinto: O porte deste BRT é tão grande que ele está trazendo outros impactos, e um deles é o ambiental. Não é ser contra o BRT. Os técnicos não são contra o BRT, são contra essa obra, esse porte deste BRT. Até porque a demanda, a quantidade de viagens maior não é que vem do Itaigara. Por que não faz uma obra de menor porte e menos impactante e que realmente atenda a função transporte e que se integre ao metrô? Será que o objetivo é concorrer com o metrô? Por que só esse pedaço, custando tão caro, e colocando outras coisas? A obra é um porte muito grande. A demanda dali não é tão grande para uma obra desse tamanho. Nós temos uma cidade onde temos pouca vegetação, aquelas árvores são centenárias, belíssimas. Será que é necessário? Será que não se podia fazer um BRT ou um corredor como tem na Vasco da Gama, que é continuação, que não é desse porte? Se é para atender o transporte coletivo existe a possibilidade. Só que ali também está se querendo fazer melhorias viárias, aqueles viadutos para o BRT, por causa do projeto do BRT. O BRT não precisa de tudo isso. Esse dinheiro de alguma forma vai ser liberado com a justificativa que é BRT, mas não precisa daquele BRT. Nenhum técnico é contra o BRT, qualquer técnico de transporte prioriza o transporte público, mas não essa obra. Rio de Janeiro acabou de tirar o elevado, por que a gente tem que fazer elevado? Para melhorar o transporte de automóvel? A gente nunca vai desengarrafar a cidade se você só melhora o sistema de transporte individual. Porque quem está no carro não passa para ônibus, a quantidade de pessoas que está no ônibus não vai desengarrafar aquele pedaço. O projeto deste BRT está equivocado. O prefeito e a Câmara de Vereadores têm que aceitar o projeto de menor porte, e é possível fazer isso.

BNews: Então, os possíveis problemas que podem ocorrer com a implantação do BRT vão além da derrubada de árvores e o tamponamento de rios?
Ilce Marília Dantas Pinto: Muito além. O impacto visual vai ser enorme por causa dos elevados desnecessários. Aí, todo mundo diz ‘ah, mas e o metrô?’ Eu não quero nem questionar por que o metrô foi feito assim ou não. Mas, o metrô traz uma quantidade de pessoas muito maior porque é para cidade inteira. Se a gente parar para pensar bem rapidinho, a gente já tem uma ligação Lapa-LIP [Ligação Iguatemi Paralela]. A quantidade de pessoas que usam o transporte público, que vai pegar esse corredor, é menor do que a que vem pelo metrô. Então, por que precisa de uma obra tão grande? A demanda daquele trecho não necessita fazer uma coisa tão grande, o custo daquilo é alto. Um monte de perguntas que está por trás e que a sociedade precisa ter resposta. Por que a demanda maior que vem da orla, pela Avenida ACM, do Itaigara, não está se fazendo isso? Aí, o pessoal justifica ‘ah, mas é para aliviar o trafego’. Se é para aliviar o tráfego, a sociedade precisa escolher. A sociedade precisa saber se toda essa obra é necessária. É necessária por causa da demanda de transporte que tem ali? A demanda não é tão grande, pelo menos não foi mostrado. Agora, a gente pregunta: que demanda tão grande é essa se tem o metrô do outro lado? Têm muitas perguntas por trás que não estão claras. Será que eu estou levando gente para o metrô? Meu objetivo é levar gente para o metrô? Precisa fazer uma obra tão cara quanto metrô? É quase o mesmo custo do metrô. Quais são os interesses que estão por trás e que não estão claros? Quanto mais você constrói vias para diminuir o engarrafamento, e quanto mais você alimenta compra de carro mais você continua com o engarrafamento. E não é fazendo viadutos, tampando rios que resolve. Não me diga que não há outra opção, que essa é única. Tecnicamente não existe nada no mundo que seja único. Pode não ser tão boa, mas por que não mostra outra alternativa? 

BNews: Qual seria a alternativa?
Ilce Marília Dantas Pinto: Mais simples. Um BRT. BRT não é isso que está aí. Qual alternativa mais simples? Pode ser um BRT. BRT significa ônibus rápido. Têm diversas maneiras de você fazer ônibus rápido. Não precisa fazer uma obra desse tamanho para dizer que é BRT. Curitiba tem BRT, em outros lugares têm BRT menor. BRT é um sistema do ônibus em canaleta, e aí você bota um ônibus de maior capacidade para ser articulado. O resto todo é um enfeite do BRT. Aquela parte que tem na Vasco da Gama pode se transformar no BRT, só é melhorar o sistema de bilhetagem, botar, por exemplo, ônibus de alta capacidade, melhorar a circulação dos ônibus. Para ser BRT não precisa sair tapando tudo, nem fazendo viaduto. Viaduto para quê? Para que um em cima e outro embaixo? O problema não é o BRT, é este BRT. Claro que vai melhorar a mobilidade, mas não precisa ser dessa forma. A gente não está dizendo que prefeitura está falando uma mentira, mas não é toda uma verdade. É uma obra que envolve outras coisas. Essa forma de fazer drenagem também é uma forma crítica. Esse projeto não está claro. Não está muito explicado e ninguém entende o motivo. Se a população gosta daquelas árvores a prefeitura tem obrigação de pensar em outra forma.

BNews: Nesta semana, o prefeito ACM Neto (DEM) afirmou que os protestos são feitos por um grupo muito pequeno, que a questão foi amplamente debatida em audiências públicas, e garantiu que a obra será executada. Como a senhora avalia, enquanto especialista, a postura do gestor soteropolitano? 
Ilce Marília Dantas Pinto: Passou a época em que a decisão vinha de cima para baixo. Está na Política de Mobilidade que a decisão tem que ser feita de forma participativa e democrática. Então, a população é quem tem que decidir. Arranje uma forma que a população entenda e diga que quer, arcando seus prejuízos. Não existe projeto único. Que seja o melhor projeto do mundo, a sociedade pode dizer ‘eu não quero’. É a população que tem que dizer isso, não é técnico, nem prefeito, é todo mundo junto. Transporte não é uma coisa só técnica, é social. A gente usa transporte porque precisa atingir as nossas necessidades. A melhor técnica pode não ser a melhor resposta social. Ninguém pode escolher pelo cidadão. Isso é uma atitude pacata. Nas se faz mais isso no mundo. 

BNews: Qual o principal problema do trânsito de Salvador?
Ilce Marília Dantas Pinto: A falta de integração entre os modos de transportes. Inclusive esse BRT. Uma rede de transporte é como um corpo humano. Não adianta meu fígado está funcionando bem, se meu coração não está funcionado bem. Existem vários tipos de integração que estão até tentando resolver, com tarifa, com operacional. Infelizmente, existe também não só na Bahia, mas no Brasil, uma falta de integração, chamada de integração institucional.

BNews: Qual possível solução a senhora poderia apresentar para amenizar esses problemas?
Ilce Marília Dantas Pinto: O Governo do Estado e o Governo Municipal têm que pensar em trabalhar juntos nessa mesma rede que pertence a mesma cidade. Problema de engarrafamento o mundo inteiro tem.  Nós temos uma política de mobilidade que diz que mobilidade é para pessoas e bens. Está na hora dos dirigentes começarem a pensar que tem que fazer a mobilidade não como propaganda política, eles têm que pensar nas pessoas e no desenvolvimento da cidade.  Engarrafamento só se resolve com políticas para melhorias do transporte público e não melhorias para transporte individual. E aí, continua a ideia retrógada de se pensar sempre, mesmo quando o problema é transporte público, de melhorar a mobilidade do automóvel e não de integrar o automóvel no transporte público. A população sofre demais com sobe e desce. É pensar nessa rede de forma integrada. As políticas municipais e estaduais têm que ser pensadas de forma integrada. A rede de mobilidade é para todos, as pessoas com deficiência, idosos, para quem tem carro, para quem não tem, para quem vai de bicicleta. Enquanto não se pensar dessa forma, a gente vai ter um monte de obra faraônica. Vamos pensar de uma forma mais unida. A população mais pobre que depende de transporte público é quem sempre sai menos favorecida nessa briga toda.

Classificação Indicativa: Livre

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