Política

Veja perguntas e respostas sobre o perdão de Bolsonaro a Daniel Silveira e suas lacunas

José Cruz/Agência Brasil
O indulto deixou uma série de incertezas jurídicas  |   Bnews - Divulgação José Cruz/Agência Brasil

Publicado em 22/04/2022, às 15h34   Folhapress


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O indulto individual do presidente Jair Bolsonaro (PL) ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ) deixou uma série de incertezas jurídicas diante do ineditismo da medida, que costuma ser concedida de forma coletiva.

Em tese, o instrumento impede o cumprimento da pena de 8 anos e 9 meses de prisão, determinada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) por 10 votos a 1 por ataques feitos por Silveira à corte, mas não sua inelegibilidade.

Bolsonaro assinou o decreto nesta quinta-feira (21), menos de 24 horas após a condenação do deputado bolsonarista, em uma medida que ampliou a tensão entre os Poderes. O presidente mencionou o direito à liberdade de expressão e a defesa do interesse público para justificar a medida.

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Nesta sexta-feira (22), o partido Rede Sustentabilidade apresentou ao Supremo uma ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) que pede, de forma liminar (provisória), a suspensão imediata do decreto. Também requer que a corte declare a incompatibilidade do indulto individual a Silveira.

O que é o indulto individual?
Chamado de benefício da graça, o indulto individual é o perdão da pena judicial e pode ser concedido apenas pelo presidente da República, conforme prevê a Constituição Federal de 1988. A Carta diz ainda que ele não se aplica a casos de condenados por tortura, tráfico de drogas, terrorismo e outros crimes definidos como hediondos.
Bolsonaro se baseou no Código de Processo Penal, segundo o qual "a graça poderá ser provocada por petição do condenado, de qualquer pessoa do povo, do Conselho Penitenciário, ou do Ministério Público, ressalvada, entretanto, ao presidente da República, a faculdade de concedê-la espontaneamente".

Qual a diferença do indulto comum?
Em geral, os indultos, previstos tanto na Constituição quanto na legislação penal, são coletivos e beneficiam diversos condenados que cumpram requisitos objetivos, como tempo de prisão.
Além disso, o benefício costuma ser concedido àqueles que já estejam cumprindo a pena. No caso de Silveira, o indulto foi emitido antes mesmo do trânsito em julgado, ou seja, antes de esgotadas todas as chances de recurso judicial.

O que diz o decreto de indulto a Daniel Silveira?
O decreto assinado por Bolsonaro diz que a prerrogativa presidencial para a concessão de indulto individual é medida fundamental à manutenção do Estado democrático de Direito e que a liberdade de expressão é "pilar essencial da sociedade em todas as suas manifestações".
O texto justifica a concessão da medida como forma de manter o mecanismo de freios e contrapesos entre os três Poderes e zelar pelo interesse público, afirmando que a sociedade encontra-se em "legítima comoção" por causa da condenação do deputado.
Na sequência, o presidente concede a graça a Daniel Silveira, afirma que o benefício independente do trânsito em julgado [da ação] e que abrange "as penas privativas de liberdade, a multa, ainda que haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União, e as penas restritivas de direitos".
Em transmissão ao vivo nesta quinta-feira (22), Bolsonaro leu o texto do indulto e também citou as motivações que embasaram a concessão do benefício. "Nós nos fundamentamos em ações, em jurisprudência do próprio senhor ministro Alexandre de Moraes. O decreto é constitucional e será cumprido", afirmou, citando argumentação usada pelo magistrado em 2019 em ação no Supremo.

O STF já se manifestou sobre indulto?
Sim, mas não em relação a indultos individuais, como no caso de Silveira. Em 2019, ao julgar um indulto natalino assinado pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) em dezembro de 2017, o Supremo decidiu que o presidente da República tem a atribuição constitucional de editar o decreto de indulto da forma como quiser.
Na ocasião, por 7 votos a 4, os ministros julgaram constitucional o decreto que perdoou, entre outros, condenados por corrupção e lavagem de dinheiro que tinham, até aquela data, cumprido um quinto (o equivalente a 20%) da pena.
Votaram nesse sentido os ministros Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli. Foram vencidos o relator do processo, Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux e Cármen Lúcia.
Indicado por Temer à corte, Moraes foi o ministro que na ocasião abriu a divergência. Em seu voto, ele disse que não cabe ao Judiciário reescrever um decreto presidencial.
"Se a escolha [do presidente] foi feita dentro das legítimas opções constitucionalmente previstas, me parece que não se pode adentrar no mérito [dessa escolha]. Não se pode trocar o subjetivismo do chefe do Executivo pelo subjetivismo de um outro Poder", disse.

O que Bolsonaro já disse sobre o indulto?
Em 2018, após ser eleito, Bolsonaro afirmou que não concederia nenhum indulto ao longo de seu governo.
"Já que indulto é um decreto presidencial, a minha caneta continuará com a mesma quantidade de tinta até o final do mandato", afirmou ele em uma formatura de oficiais da Aeronáutica naquele ano.
Em uma mensagem nas redes sociais, Bolsonaro afirmou que havia sido eleito para pegar pesado na questão da violência e da criminalidade. "Garanto a vocês, se houver indulto para criminosos neste ano, certamente será o último".

Quais são as dúvidas jurídicas sobre o indulto individual concedido a Daniel Silveira?
Em condições normais, o indulto alivia a pena imposta ao réu, mas não seus efeitos secundários. É o que estabelece a súmula 631 do STJ (Superior Tribunal de Justiça), segundo a qual um decreto como o assinado por Bolsonaro extingue apenas os efeitos primários da condenação, ou seja, a prisão em regime fechado.
Os chamados efeitos secundários, porém, continuam de pé quando se considera o indulto normal. Por exemplo, em caso de cometimento de novo crime, fica configurada a reincidência. O réu também continua obrigado a reparar danos e perde bens de natureza ilícita.
A inelegibilidade também entra na lista das consequências que continuam aplicáveis mesmo após o indulto normal.
No caso de Silveira, como a graça constitucional foi concedida antes mesmo do trânsito em julgado, pode-se argumentar que o deputado nem chegou a ser condenado. Sendo assim, em tese, ele nem poderia sofrer os efeitos secundários da condenação.
Eliana Neme, professora da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto, afirma que, se o decreto suspende todos os efeitos da decisão, ele também valeria para a inelegibilidade. Porém, o benefício não atinge uma eventual decisão da Câmara sobre a perda do mandato.
Para ministros das cortes superiores e juristas ouvidos pela Folha, o indulto à Silveira não anula a perda de mandato imposta ao parlamentar pelo STF e a inelegibilidade. A Lei da Ficha Limpa prevê a perda de direitos políticos de condenados por decisão colegiada.

Como o STF reagiu ao indulto a Daniel Silveira?
Ministros do STF classificaram nos bastidores como "surreal" o indulto concedido a Silveira, como informou o Painel. Os magistrados disseram à coluna que nunca o instrumento foi usado para esse fim e que, até hoje, o que havia eram indultos natalinos, beneficiando um conjunto de pessoas ou um segmento.
Integrantes da corte preveem que haverá questionamentos judiciais ao decreto de Bolsonaro, o que aumenta o potencial de conflito entre Executivo e Judiciário.
Ao Painel Carlos Ayres Britto, ex-ministro do STF e presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), disse que o decreto "padece de inconstitucionalidade autoevidente" e que "indulto não é cheque em branco".
Sobre a possibilidade de que o decreto de Bolsonaro dê a Silveira o direito de disputar as eleições em outubro, leitura que tem sido disseminada por apoiadores do presidente, Ayres Britto é categórico na negativa.
"Indulto não é para elegibilizar quem se tornou inelegível. Inelegibilidade não pode ser afastada por indulto. É matéria político-eleitoral, não é matéria penal", conclui.

O que pode acontecer com o decreto e com Bolsonaro?
O professor doutor em direito Fernando Fernandes, da Universidade Federal Fluminense, afirma que o Supremo poderá apreciar um desvio de finalidade no ato do presidente da República. Ele diz ver afronta à corte e à separação de Poderes.
"O STF pode examinar desvio em relação a uma decisão de indulto ocorrida imediatamente após a uma decisão da corte, que sequer foi publicada", disse.
"A motivação é desconstituir, pelo Executivo, a decisão recém-tomada e afetada pela pessoalidade já que direcionada a um réu, e contra a separação dos Poderes. Há evidente desvio de finalidade possível de análise imediata."
O professor em direito constitucional Pedro Serrano destaca que Bolsonaro fundamentou sua decisão pela graça a Silveira em interpretação do direito à liberdade de expressão oposta à do STF.
"Ao fazer isso, [o presidente] ingressa no papel de guardião da Constituição, de seu intérprete final. O único exemplo histórico que temos do Chefe do Executivo como guardião da Constituição foi no nazismo. É totalmente inconstitucional o decreto não apenas por razoes formais", disse Serrano.
O coordenador do grupo Prerrogativas, Marco Aurélio de Carvalho, diz que o perdão de pena a Silveira viola a Constituição ao ferir o princípio de independência entre Poderes. Viola, ainda, a lei 1.079, de 1950, conhecida como Lei do Impeachment, que versa sobre crimes contra o livre exercício dos poderes Legislativo e Judiciário, o que pode resultar em um novo pedido de impedimento contra o mandatário.
"Opor-se diretamente e por fatos ao livre exercício do Poder Judiciário, ou obstar, por meios violentos, ao efeito dos seus atos, mandados ou sentenças", diz a lei.

Por que Daniel Silveira foi condenado?
Em fevereiro de 2021, o deputado federal Daniel Silveira publicou um vídeo com ataques a Edson Fachin e outros integrantes da corte, em que sugere agredi-los e defende a destituição, após o magistrado criticar uma declaração do ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas sobre um post feito às vésperas do julgamento de habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2018.
"Por várias e várias vezes já te imaginei levando uma surra. Quantas vezes eu imaginei você e todos os integrantes dessa corte aí. Quantas vezes eu imaginei você, na rua levando uma surra. O que você vai falar? Que eu tô fomentando a violência? Não, só imaginei", afirma o parlamentar no vídeo.
"Suprema Corte é o cacete. Na minha opinião vocês [ministros do STF] já deveriam ter sido destituídos do posto de vocês e uma nova nomeação convocada e feita de 11 novos ministros. Vocês nunca mereceram estar aí. E vários que já passaram também não mereciam. Vocês são intragáveis, inaceitável, intolerável, Fachin", afirma.
O vídeo acabou fazendo com que o ministro Alexandre de Moraes decretasse a prisão dele no ano passado. O deputado foi detido em flagrante.

Como votaram os ministros do STF?
Silveira foi condenado a 8 anos e 9 meses de prisão por 10 votos a 1. Os ministros afirmaram que a análise do processo vai além da situação concreta do deputado e que se trata, na verdade, de defender a democracia e as instituições.
Os ministros também aprovaram cassar o mandato de deputado, suspender os direitos políticos de Silveira, que articula candidatura ao Senado, e aplicar multa de cerca de R$ 192 mil.
Apenas o ministro Kassio Nunes Marques, nomeado por Bolsonaro, divergiu e defendeu a absolvição do parlamentar.
Também indicado pelo presidente, o ministro André Mendonça também votou para condenar o parlamentar, mas com pena menor: 2 anos e 4 meses, a serem cumpridos em regime inicialmente aberto. Além disso, afirmou que a perda de mandato depende do Congresso e que não poderia ser imposta pelo Supremo.
Criticado por antigos aliados, Mendonça reagiu e disse que fez o correto como cristão e jurista.
A pena só poderá ser cumprida após julgamento de embargos de declaração, recurso que a defesa ainda poderá apresentar.
A defesa de Silveira afirmou que ele foi vítima de um julgamento político.

Qual foi a reação da Câmara?
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), apresentou um recurso no STF para que fique definido que é do Congresso a última palavra sobre a cassação de um mandato parlamentar.
O agravo foi apresentado dentro de uma ação de 2018 impetrada por Rodrigo Maia (PSDB-RJ), então presidente da Câmara. Na época, o STF condenou o ex-deputado Paulo Feijó (PP-RJ) e determinou a perda do cargo no Congresso, com a devida comunicação da decisão à Casa Legislativa para fins de mera declaração.
O presidente da Câmara argumenta que as decisões envolvendo Daniel Silveira serão apreciadas no formato de projeto de resolução, que permite ao plenário alterar a pena recomendada pelo Conselho de Ética -e não só arquivar ou referendar. Foi o entendimento adotado no caso da ex-deputada Flordelis e que dificulta ainda mais a cassação do mandato de parlamentares no futuro.

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