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Crianças esperam adoção e preconceito é o pior entrave, diz juiz de Salvador

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Na Bahia existem 103 crianças aptas para a adoção e 1.027 pretendentes a ter um filho adotivo  |   Bnews - Divulgação Reprodução Google

Publicado em 11/10/2017, às 21h22   Tony Silva



Quem deseja adotar uma criança ou adolescente no Brasil precisa passar por etapas que vão desde análises de documentos, entrevistas até avaliação psicológica. Passar por tais critérios pode ser considerado um drama para os candidatos a adoção legal no país, porém não se compara a situação dramática das crianças que vivem nos abrigos e as que estão aptas a serem adotadas. Segundo publicação do site do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em maio de 2017, no Brasil, existem 36.524 crianças e adolescentes acolhidos em abrigos e, entre eles, 7.577 já estão à espera de adoção. Por outro lado, há 39.619 pretendentes inscritos no Cadastro Nacional da Adoção, coordenado pela Corregedoria do (CNJ).

O CNJ dispões do Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas (CNCA), que foi desenvolvido com o objetivo de criar um sistema on-line contendo dados das entidades de acolhimento e de crianças/adolescentes acolhidos.

Já na Bahia, segundo dados do Tribunal de Justiça do Estado, a partir do levantamento do CNJ, publicados em agosto deste ano, existem 103 crianças aptas para a adoção e exatos 1027 pretendentes a ter um filho adotivo. 

Ainda segundo o CNJ, no cenário nacional o fator que mais pesa é a questão da idade: 48% deles são adolescentes entre 13 e 17 anos de idade, faixa etária aceita por somente 0,7% dos pretendentes. Já 20,1% das crianças têm entre 9 e 12 anos de idade, e somente 3,3% dos futuros pais aceitam crianças nessa faixa etária.

Das crianças aptas à adoção, 61,02% têm irmãos, mas só 33% dos pretendentes aceitam essa condição. Outro fator é a raça: 65,62% das crianças são negras ou pardas, e 19,62% dos inscritos só aceitam crianças brancas. Um quarto das crianças cadastradas têm algum tipo de doença ou deficiência, mas 65,53% dos pretendentes somente aceitam crianças sem essa condição.

A reportagem do BNews entrevistou o juiz titular da 1ª da Vara da Infância e Juventude de Salvador, Walter Ribeiro Costa Júnior, que destacou os entraves e desafios para que crianças tenham uma família, além de desmitificar a burocracia na adoção. 

Segundo magistrado, atualmente, em Salvador cerca de 40 crianças e adolescentes estão em situação para serem adotadas (são aquelas que já tiveram seu processo de destituição do poder dos pais concluído). No interior do Estado são cerca de 80 na mesma situação. Além destas crianças, em média 300 se encontram em abrigos. 

Apesar dos números parecerem insignificantes, o juiz ressalta que “a situação não deve ser observada quantitativamente, pois o que deve ser observado é o prejuízo de cada criança dessas, por não estar no seio da família, da extensa (tio ou outro parente) ou substituta”. 

Para Walter Ribeiro, “o grande problema de adoção é o preconceito”. O titular da Iª Vara da Infância comenta que a grande maioria das pessoas querem adotar meninas com até dois anos de idade e brancas. “Esse perfil de criança não é a realidade do Brasil, tão pouco de Salvador. O preconceito é um problema em todo Brasil. Temos que quebrar essa cultura de adoção, que se baseia em modelos pré-estabelecidos pela sociedade em parâmetros europeus. A busca pelo ‘bebê Johnson’. A adoção está no sentimento de um pertencer o outro. É triste ouvir a pessoa dizer que só quer uma criança de acordo a aparência dos pais. Estamos falando de sentimento e vontade de pertencer um ao outro”, comenta. 

A grande exigência de perfis fora da realidade, para o juiz é o motivo principal dos atrasos na adoção. “As pessoas dizem que há muita burocracia, mas elas que criam a burocracia por causa do preconceito. O que engessa o andamento da fila de adoção, é que as pessoas estabelecem uma série de requisitos. Tem gente que quer saber até se os pais das crianças a serem adotadas tinham doenças crônicas ou não”, critica. 

O magistrado destaca que a Iª Vara da Infância e da Juventude periodicamente realiza curso para adoção, além de recepcionar grupos da sociedade civil organizada, profissionais, além estar aberto ao público geral para quebrar esse mito da burocracia, além de realizar um trabalho junto a algumas faculdades, a fim de acabar com entendimentos equivocados, estabelecimento de regras e modelo predeterminados, que fazem com que a sociedade não avançe. 

Na contramão dos requisitos preestabelecidos pelas pessoas que desejam adotar, o perfil da criança nos abrigos da capital baiana é outro, segundo o magistrado. “As crianças que estão nos abrigos de Salvador, são negros; têm entre cinco e 17 anos; muitas estão em grupos de irmãos; são do sexo masculino; maioria portadores de necessidades especiais e doenças crônicas como paralisia cerebral, Aids, outras doenças congênitas, a exemplo do autismo. Podemos dizer que praticamente das 40 crianças que temos disponíveis para adoção, 90% são portadoras de necessidades especiais, e nesse perfil dificilmente querem adotar. Raramente alguém pede adoção sem perfil”, explica. 

Além do perfil das crianças e adolescentes na fila de adoção, o magistrado destaca o perfil dos pais. “São pessoas que estão envolvidas com drogas, moradores de rua, pessoas que abandonaram tudo por causa da própria droga, mães que têm o parto como animais. As relações são animalescas sem critérios de união e muitas dessas crianças nascem e são jogadas nos lixos, deixam nas escadarias e pontos de ônibus. Recebemos diversos casos e há frequência de abandonos de crianças em Salvador”, afirma. 

Apesar dos números divulgados pelo juiz, ele acredita “que a quantidade de crianças que estão precisando de uma família na Bahia, é maior do que o chega para as varas da infância. Pois  o atual estado de pobreza no país pode proporcionar tal necessidade”. 

Mais entraves 

O magistrado criticou o que ele classificou como “a ausência de políticas públicas do estado, em todas esferas de governo”.  

O juiz Walter Ribeiro comentou que “os investimento ainda continuam em obras e não nas pessoas. Não há educação e controle familiar. Os pais têm pouca escolaridade, a droga ainda é o centro do problema, ela disfarça a fome, ela esquenta do frio, ela socializa. O que existe são apenas discursos de promessas que ainda assim, só são feitas em épocas políticas”. 

Além da apontada ausência do Estado, segundo o magistrado um movimento social, defende que a população que vive nas ruas tem direito a ter um filho. “Isso só vai agravar mais o problema”, comenta. 

Avanços

Apesar dos números e o entrave dos requisitos exigidos pelos candidatos a adoção, o juiz destaca que houve avanços em cinco anos a frente da 1ª da Vara Infância e Juventude de Salvador. “Em 2012 eram 739 crianças e adolescentes em abrigos em Salvador, nos cerca de 20 abrigos. Em cinco meses diminuiu para 389. Atualmente tem uma média de 300. Em cinco anos conseguimos manter a média”, pontua.

O movimento “Apadrinhamento Afetivo” é uma das saídas para suprir a necessidade das crianças nos abrigos, adotadas pela Iª Vara da Infância.  “Esse apadrinhamento pode acontecer de três formas: a pessoa pode ter a criança nos finais de semana, férias, ou ingressa com guarda provisória; aquela pessoa que não tem tempo pode ser um padrinho colaborador. Ex: de um médico, abre uma quantidade de consultas para atender as crianças; ou um padrinho financeiro, que pague um curso para aquela criança, ou um grupo de padrinhos que proporcione uma estrutura ou materiais para crianças que têm alguma necessidade especial”, explica. 

Mensagem à sociedade

O juiz Walter Ribeiro deixa um recado para a sociedade: “Eles não tem como se expressar, às vezes eles não sabem nem dizer o que de fato eles querem, e o que eles querem é uma família. Mas nós que trabalhamos no dia-a-dia servimos de porta-voz para dizer a sociedade que eles precisam sim de uma família, porque o modelo de felicidade, a felicidade não está em outro lugar, se não em ter referências familiares”, afirma. 

O titular da Iª Vara da Infância encerra com apelo a sociedade: “A gente quer em nome deles que por vezes não tiveram a oportunidade de externar a sociedade que eles precisam de uma família, desse sentimento de pertencimento, que nos faz feliz, tanto as crianças que lá estão e adolescentes e quem se interesse em tê-los. É importante que venham conhecer o trabalho que fazemos e possam se aproximar. É possível trocar informações e conhecer. Devemos quebrar os preconceitos”, pontua.

Classificação Indicativa: Livre

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