Salvador

Rio Vermelho em disputa: Especulação imobiliária avança sobre memória em área de histórica maternidade

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Espaço foi doado ao governo no início do século XX e terminou nas mãos da iniciativa privada após abandono.  |   Bnews - Divulgação Divulgação
Alex Torres

por Alex Torres

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Publicado em 15/04/2025, às 05h00 - Atualizado às 05h44



Em meio a árvores e escombros, um terreno abandonado no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, carrega uma importante história do sistema de saúde soteropolitano. Desativado há mais de 40 anos, o local situado na rua Marques de Monte Santo foi responsável por abrigar a antiga Maternidade Nita Costa, considerada à época como a mais importante do estado, além do Hospital da Criança.

Registros do historiador Ubaldo Marques Porto Filho, falecido em 2017, indicam que o terreno pertencia a uma família que cedeu o imóvel ao estado com a condição de que o mesmo tivesse uma finalidade social. Dessa forma, a unidade de saúde foi inaugurada oficialmente em 25 de dezembro de 1936.

Em entrevista ao BNEWS, o historiador Rafael Dantas falou sobre o contexto histórico do Rio Vermelho no momento em que a maternidade chegou para atender aos moradores, não apenas do bairro, mas de toda a cidade de Salvador.

"Aquela região do Rio Vermelho, no início do século XX, era lembrada como um lugar afastado do centro antigo de Salvador. Um lugar com predominância de área verde, antigos chalés e casas, em uma perspectiva até senhorial. Muitas casas em estilo fazenda, casas de repouso etc. Então esse lugar boêmio que hoje conhecemos era um lugar mais de descanso [...] Depois das décadas de 1920 e 1930, passa a ocorrer um aumento populacional significativo", explicou Rafael Dantas.

"A maternidade surge justamente em uma época em que era necessário dar atenção àquela localidade. Um lugar que foi passando por transformações ao longo do tempo e passou a necessitar de serviços e equipamentos que também oferecessem saúde e abrigo à população", completou.

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Foto da antiga maternidade Nita Costa - Divulgação | Blog do Rio Vermelho

De referência às ruínas

Com o passar dos anos, tanto a Maternidade Nita Costa quanto o Hospital da Criança tornaram-se referências em suas respectivas áreas. No entanto, o cenário começou a mudar em 1952, quando o então governador Antônio Balbino inaugurou a Maternidade Tsylla Balbino, situada na Baixa de Quintas.

Ainda segundo Ubaldo Marques, em entrevista ao G1, a nova construção fez com que o gestor baiano direcionasse os recursos para a nova unidade, que carregava o nome de sua esposa, cortando as verbas que eram destinadas à Nita Costa.

"Essa prática de tirar recursos de uma instituição para colocá-los em outra é bastante recorrente na história recente da Bahia e já causou o abandono de muitos outros prédios e instituições. Muda a gestão, o governo, e cada um dá prioridade ao que quer — nem sempre ao que já existe. Isso termina gerando deterioração e abandono", afirmou Rafael Dantas.

A Nita Costa funcionou até o ano de 1959, quando teve seu fechamento oficializado. No entanto, uma pequena ala do complexo continuou a funcionar para órfãos até 1983. Após o encerramento total, o terreno deveria retornar à família doadora, mas acabou permanecendo com o estado, que o vendeu à iniciativa privada e, posteriormente, foi novamente vendido ao Grupo Odebrecht.

Especulação imobiliária

Com o fim definitivo da Nita Costa e o repasse do terreno sem o cumprimento da devolução à família doadora, o local ficou abandonado por muitos anos e não acompanhou os avanços trazidos pela urbanização do bairro, que hoje é considerado um dos mais movimentados da capital baiana.

Presidente da Associação dos Moradores e Amigos do Rio Vermelho (AMARV), Miguel Sehbe comentou sobre encontros que ocorreram há mais de 15 anos, envolvendo os moradores e a Odebrecht, com a finalidade de discutir possíveis construções para o imóvel abandonado.

Devid Santana | BNEWS
Imóvel que ficava a antiga maternidade Nita Costa, na Rua Marquês de Monte Santo - Devid Santana | BNEWS

"Sei que houve uma reunião com a Odebrecht há muito tempo, algo em torno de 2010 ou 2008. Até onde sei, a Odebrecht se desfez deste terreno. Entregou por conta de dívidas depois da situação do 'Petrolão'", disse Miguel.

Diante da situação, o terreno foi vendido novamente em 2016, desta vez para a BV Financeira, que é do Grupo Votorantim. Atualmente, não há detalhes sobre quem seria o novo proprietário do imóvel. A equipe de reportagem do BNEWS procurou o Grupo Votorantim, mas não obteve retorno.

Recentemente, em março deste ano, o grupo SOS Buracão denunciou, por meio das redes sociais, a presença de caminhões e retroescavadeiras no terreno. Nas imagens divulgadas, as máquinas aparecem atuando e removendo parte da vegetação do local.

"No dia do Carnaval, eu vi aquele caminhão descendo com uma retroescavadeira. Eu fiz o vídeo e mandei para o pessoal [...] A supressão de árvores não pode acontecer sem licença, e não havia nenhuma na porta. Eles disseram que não era supressão e que seria apenas limpeza do terreno. Estavam limpando com uma retroescavadeira", relatou o presidente da associação.

Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Desenvolvimento e Urbanismo (Sedur) de Salvador, que informou que a área não é de domínio público — ou seja, ainda estaria sob posse da iniciativa privada.

Questionada sobre as obras que estão acontecendo no local, a pasta informou que realizou uma fiscalização e que os agentes do órgão identificaram apenas a limpeza da área. Sobre alguma futura obra no local e eventual regularização, a Sedur não respondeu ao questionamento.

Impactos à população

Com a repercussão do ocorrido, a vereadora de Salvador, Aladilce Souza (PCdoB), comentou a publicação, classificando como "muito suspeito o desmatamento no período do Carnaval" e afirmando que providências seriam tomadas para esclarecer os fatos e verificar o que poderia ser feito.

Em entrevista ao BNEWS, a vereadora também destacou os constantes leilões de áreas verdes que têm sido realizados pela Prefeitura de Salvador.

"Estamos procurando informação sobre essa situação, porque são várias [...] Fomos observar que, de 2013 para 2025, tivemos 117 leilões, sendo a maioria referente à venda de terras públicas. A maior parte dessas áreas tem vegetação; cerca de 98% das terras vendidas incluem áreas verdes", disse Aladilce.

"Tem que ser pensado que cidade estamos construindo. A maioria dessas áreas tem sido para construir prédios, espigões ou hotéis. Estamos vivendo uma situação em que o prefeito está se desfazendo das áreas públicas para se beneficiar da especulação imobiliária [...] Muito grave o que está acontecendo, porque a cidade está sendo fechada por uma cortina de concreto. Todas as semanas sobe um prédio", completou.

Ainda segundo Miguel Sehbe, a construção de altos prédios no bairro do Rio Vermelho deve causar o efeito contrário à valorização. "Pode parecer que vai valorizar, mas é o contrário: vai depreciar. Toda vez que se coloca um empreendimento desses, há impacto", disse.

"Não dá para ser troglodita. Se você tem uma loja, o ponto de comércio vale mais do que as instalações. O principal ponto de comércio de Salvador é a praia, o mar, a área verde. A pessoa que chega aqui para gastar dinheiro vem atrás do fundo de comércio que Salvador oferece. Você acha que alguém vem aqui atrás de um espigão? É preciso mudar essa mentalidade com urgência", finalizou Miguel.

O BNEWS também tentou contato com a Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia (Ademi-BA), em busca de mais informações sobre como a transformação do espaço impactou na especulação imobiliária da região. No entanto, até o fechamento desta matéria, nenhuma resposta havia sido encaminhada.

A história da Nita Costa termina — por ora — soterrada sob escombros, silêncios e interesses. O que antes foi um espaço de vida, hoje ilustra desprezo pelas áreas verdes e o avanço de uma urbanização que apaga o passado para erguer lucros. Resta saber: até quando Salvador vai crescer sem olhar para o que está deixando para trás?

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