Ciência

Nobel de Medicina de 2021 vai para descoberta de receptores de temperatura e sensação de toque na pele

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Bnews - Divulgação Reprodução/Twitter Nobel Prize

Publicado em 04/10/2021, às 18h33   Folhapress


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O americano David Julius, 65, e o libanês de origem armênia Ardem Patapoutian, 54, são os ganhadores do Prêmio Nobel em Fisiologia ou Medicina de 2021. Trabalhando de forma independente em instituições nos EUA, os dois elucidaram os mecanismos que permitem que o sistema nervoso capte estímulos de temperatura e toque na pele.

Julius trabalha na Universidade da Califórnia em San Francisco, enquanto Patapoutian, hoje naturalizado americano, é cientista da instituição Scripps Research, também na Califórnia. Os pesquisadores vão dividir o prêmio de 10 milhões de coroas suecas (cerca de US$ 1,15 milhão, ou R$ 6,25 milhões na cotação do dia 4 de outubro).

Para chegar às descobertas premiadas agora pelo comitê do Nobel, Julius contou com uma ajuda culinária. Ele começou estudando os efeitos da capsaicina, substância presente na pimenta-malagueta e outras variedades aparentadas muito picantes. A ideia é que a sensação de forte calor trazida pela capsaicina quando consumimos essas pimentas poderia ajudar a entender a sensibilidade das células nervosas à temperatura.

"Começamos olhando para a natureza, trabalhando com a química dos produtos naturais", contou ele em entrevista ao site do prêmio. "No nosso caso, são compostos que os vegetais provavelmente produzem como defesa contra animais herbívoros."

Seguindo esse raciocínio, o pesquisador americano conseguiu identificar o receptor, ou seja, a fechadura química das células onde as moléculas de capsaicina se conectam e produzem o efeito de "calor" dolorido. Estudos posteriores mostraram que receptores semelhantes são responsáveis pela gradação das sensações normalmente provocadas por temperaturas mais altas e mais baixas.

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Para chegar a essa descoberta, o americano e seus colegas atuaram como caçadores de genes (grosso modo, trechos funcionais do DNA). Primeiro, eles trabalharam com células nervosas que eram sabidamente sensíveis aos efeitos da molécula "picante", identificando os genes desses neurônios que estavam ativos.

O segundo passo foi copiar os genes dessa lista e inserir versões extras deles em neurônios que, em tese, não seriam sensíveis à capsaicina. Um a um, esses neurônios foram testados, até que a equipe flagrou os que tinham ficado capazes de reagir à molécula oriunda da pimenta.

O gene transferido para essa molécula nervosa era o que continha a receita para produzir o receptor, batizado de TRPV1. Ele é um canal de íons, ou seja, controla a passagem de átomos eletricamente carregados, os quais, por sua vez, levam à transmissão de impulsos de eletricidade pelos neurônios.

"As substâncias naturais são uma fonte importantíssima para a descoberta de novas drogas. Só na área dos estudos sobre a dor, temos a aspirina, que vem dos salgueiros, e os opioides, obtidos a partir da papoula. É importante preservar essa diversidade", afirmou Julius.

Ele contou que ficou sabendo do prêmio por uma mensagem de texto da cunhada em seu celular no meio da madrugada. "Ela me escreveu dizendo 'Olha, tem alguém tentando falar com você, mas eu não quis dar seu número'. Depois o comitê ligou para a minha mulher, e aí finalmente recebi a notícia."

Julius foi orientando de dois outros ganhadores do Nobel, Randy Schekman e Richard Axel, durante seu doutorado e pós-doutorado. "Os dois sempre foram extremamente curiosos e rigorosos. Acho que é a grande lição que aprendi com eles", declarou.

Patapoutian, o outro ganhador, disse que tinha colocado o celular em modo "não perturbe". Por isso, quem lhe deu a notícia foi seu pai, de 92 anos, com quem o comitê do Nobel conseguiu falar primeiro. "Ser avisado justamente por ele foi muito especial", disse ele ao portal do prêmio.

Também usando métodos de biologia molecular, o pesquisador e seus colegas identificaram um dos principais genes responsáveis pela sensação de toque, ou pressão mecânica, como dizem os cientistas.

Eles também contaram com a ajuda de neurônios sabidamente especializados nessa tarefa. Empregaram um processo de tentativa e erro, "desligando" mais de 70 genes que eram candidatos a desempenhar essa atividade. Foi justamente o último gene da lista que se relevou crucial -quando ele era desativado, a célula deixava de reagir ao toque. E ele também continha a receita para um receptor que funciona como canal de íons.

As implicações da descoberta, porém, vão muito além da percepção dos sentidos. "Estamos descobrindo, por exemplo, que os glóbulos vermelhos do sangue usam esse sistema para ajustar seu volume na corrente sanguínea, e que células do sistema imune também mudam seu comportamento seguindo esse mecanismo dependendo da quantidade de ferro no sangue. É totalmente inesperado", conta.

COMO É ESCOLHIDO O GANHADOR DO NOBEL
A tradicional premiação do Nobel teve início, de certa forma, com a morte de Alfred Nobel, inventor da dinamite. Em 1895, em seu último testamento, Nobel registrou que sua fortuna deveria ser destinada para a construção de um prêmio -o que foi recebido por sua família com contestação. O primeiro prêmio foi dado em 1901.

A escolha do vencedor do principal prêmio da área de fisiologia ou medicina começa por indicações de um grupo de 50 pesquisadores ligados ao Instituto Karolinska, na Suécia. Alfred Nobel, em seu testamento, destinou à instituição a missão de eleger para receber a láurea aquele que tenha feito notáveis contribuições ao futuro da humanidade.

O processo tem início no ano anterior à premiação, mais especificamente em setembro, com o envio de convites para indicar um nome para o prêmio, o que deve ocorrer até o dia 31 de janeiro.

Podem indicar nomes os membros do Comitê do Nobel do Instituto Karolinska; profissionais da área de biologia e medicina ligados à Academia Real Sueca de Ciências; vencedores dos prêmios de fisiologia ou medicina ou de química; professores titulares de medicina de instituições suecas, norueguesas, finlandesas, islandesas ou dinamarquesas; professores em cargos semelhantes em outras faculdades de medicina de universidades de todo o mundo, selecionadas pelo Comitê do Nobel, com o objetivo de assegurar a distribuição adequada da tarefa entre vários países; e acadêmicos e cientistas selecionados pelo Comitê do Nobel.

Já autoindicações não são aceitas.

HISTÓRICO RECENTE DO NOBEL DE MEDICINA
Em 2020, o Nobel de Medicina foi dividido por três pesquisadores pela descoberta do vírus da hepatite C. O americano Harvey Alter, dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH), o britânico Michael Houghton, da Universidade de Alberta, e também o americano Charles Rice, da Universidade Rockefeller, foram os laureados.

Por causa da pandemia, em 2020, a medalha e o diploma de premiação foram enviados para a casa dos laureados, o que se repetirá neste ano. Há ainda a possibilidade de um presencial Dia do Nobel, em 10 de dezembro, com a premiação do Nobel da Paz -anunciada antes, porém. A decisão será tomada em meados de outubro.

Já em 2019, William G. Kaelin, da Universidade Harvard, Peter J. Ratcliffe, da Universidade de Oxford, e Gregg L. Semenza, da Universidade Johns Hopkins, foram os premiados por pesquisas sobre como as células percebem e alteram o comportamento de acordo com a disponibilidade de oxigênio.

Em 2018, foi a vez de James P. Allison e de Tasuku Honjo serem laureados pelas descobertas ligadas à imunoterapia, ou seja, ao combate do câncer com drogas que potencializam a função do sistema imunológico.

Entre as descobertas premiadas no passado estão as da estrutura do DNA por James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins (1962), a da penicilina por Fleming e outros (1945), a do ciclo do ácido cítrico por Hans Krebs (1953) e a da estrutura do sistema nervoso por Camillo Golgi e Santiago Ramón y Cajal (1906).

Outras descobertas notáveis premiadas pelo Nobel de Medicina ou Fisiologia são a da insulina (1932), da relação entre HPV e câncer (2008), a da fertilização in vitro (2010), a de que existem grupos sanguíneos (1930) e a de como agem os hormônios (1971).

A única pessoa nascida no Brasil que recebeu um Nobel foi o britânico Peter Medawar, pela descoberta das bases da tolerância imunológica adquirida, ou seja, a capacidade de fazer o sistema imunológico de um organismo não reagir a certos fatores.

"É meu desejo que, ao atribuir os prêmios, nenhuma consideração seja dada à nacionalidade, mas que o prêmio seja concedido à pessoa mais digna, sejam ou não escandinavos", diz o testamento de Alfred Nobel.

Apesar do desejo, a concentração das premiações científicas em países ricos é expressiva. Isso sem contar o pequeno número de mulheres premiadas, somente 12 de 222 laureados -e o Nobel de Medicina, entre os prêmios científicos, ainda é o com maior participação feminina.

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AGENDA DO NOBEL
Nobel de Física - terça-feira (5)

Nobel de Química - quarta-feira (6)

Nobel de Literatura - quinta-feira (7)

Nobel da Paz - sexta-feira (8)

Nobel de Economia - segunda-feira (11)

Os anúncios ao vivo dos vencedores podem ser acompanhados no site oficial da premiação e no perfil do YouTube do Nobel.

Classificação Indicativa: Livre

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