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Centro Histórico de Salvador: Como a região deixou de ser área nobre, entrou em decadência e busca nova era

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Historiador relata como o Centro passou a se moldar na forma que conhecemos hoje, entre as décadas de 50 e 70  |   Bnews - Divulgação Foto: Joilson César / BNews

Publicado em 14/07/2024, às 06h00   Gabriela Icó



O poeta e ativista baiano Castro Alves, em Espumas Flutuantes (1870), celebra a figura daquele que semeia livros e inspira o pensamento crítico do povo. Em seus versos, ele vê os livros como ferramentas poderosas para o despertar da consciência e da reflexão. Hoje, a memória de Castro Alves é preservada em uma estátua na praça que leva seu nome, situada no Centro Histórico de Salvador, o mesmo local onde recitava suas poesias.

Praça Castro Alves
Foto: Joilson César / BNews

Inspirado por esse legado de reflexão e transformação, o BNEWS inicia a série de reportagens "Da Decadência Urbana às Noites de Luxo no Centro de Salvador". Em sua estreia, a reportagem mostra como a região que um dia foi o coração pulsante da vida cultural, intelectual e social da capital baiana, enfrentou um processo de decadência e hoje submerge em um novo ciclo de revitalização e sofisticação.

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O Centro Histórico de Salvador é mais do que o Pelourinho. Ao todo, a área abrange onze bairros: Comércio, Nazaré, Tororó, Saúde, Centro, Barris, Liberdade, Barbalho, Santo Antônio Além do Carmo, Macaúbas e o Centro Histórico propriamente dito. A região é importante desde a consolidação de Salvador como um ponto de comércio marítimo no século XVI e, consequentemente, foi o núcleo da elite local. Apesar de seu passado como um forte polo econômico, ainda não havia emergido a característica que predominou nas últimas décadas: a vida social e cultural.

O primeiro grande marco cultural do Centro surgiu antes mesmo da República, deixando rastros que perduram até hoje. Em 1812, o Theatro São João foi inaugurado na atual Praça Castro Alves, sendo o primeiro grande teatro do Brasil. Durante mais de um século, o local movimentou as noites da pacata vida soteropolitana entre o fim da época colonial e o início da República.

Em meio a espetáculos, reuniões políticas e abolicionistas, o Theatro São João recebeu nomes como o poeta Castro Alves e o compositor Carlos Gomes, que hoje dá nome a uma rua ao lado. Contudo, a grande transformação na vida cultural do Centro aconteceu muito depois desse primeiro marco, a partir dos anos 50, quando Salvador experimentou um alto crescimento demográfico.

1950 - 1970: Os Anos Dourados
Em entrevista à reportagem, o historiador e professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), Pablo Iglesias Magalhães, relata como o Centro passou a se moldar na forma que conhecemos hoje, entre as décadas de 50 e 70. "Os anos 50 são um ponto de virada porque a população praticamente dobrou. Passou de cerca de 250 mil habitantes no início dos anos 40, na velha Salvador, para mais de 400 mil habitantes em menos de 20 anos. Isso se deve, em grande parte, ao fluxo de pessoas do interior em direção à capital. Isso mudou tudo", explica.

O historiador também aponta que, após a abertura dos portos e a migração da elite do Pelourinho para áreas como Corredor da Vitória, Canela e Campo Grande, o Centro ganhou espaço para o surgimento da boemia local. “Do ponto de vista cultural, a decadência foi lenta. O Centro de Salvador deixou de ser a única alternativa, mas ainda mantinha uma vida cultural vibrante, com teatros, cinemas, boates, uma biblioteca pública, tipografias, grandes livrarias e redações de jornais. Além da parte lúdica, a intelectualidade também se concentrava ali”, conta.

Nos anos 50 e 60, a área se transformou em um grande centro empresarial e comercial, com bancos, órgãos públicos e movimentos culturais, como o Clube de Cinema da Bahia (CCB), hoje conhecido como Cineclube Glauber Rocha, em homenagem ao cineasta baiano. O local, na Praça Castro Alves, foi um dos cineclubes mais importantes do país na década de 50.

Embora a elite tivesse se deslocado, o Centro continuava vibrante e atraía estudiosos, ativistas e figuras públicas. A rainha Elizabeth II fez sua passagem por Salvador entre o Mercado Modelo e o Campo Grande em 1968. Além disso, a extinta boate Anjo Azul, na Rua do Cabeça, recebeu o casal de filósofos Simone de Beauvoir e Jean-Paul Sartre em 1960, um evento resgatado pelos autores Antônio Albino Canelas Rubim, Simone Coutinho e Paulo Henrique Alcântara no artigo "Salvador nos Anos 50 e 60: Encontros e Desencontros com a Cultura".

“O Café das Meninas era um ponto de reunião. A loja Duas Américas tinha a primeira escada rolante, as pessoas iam lá para ver. As pastelarias Perez, Almeida e Triunfo que foram destruídas em um incêndio em 1963, a Casa de Chá Baiana, a sorveteria A Cubana, o Bar Cacique e o cabaré Tabaris… tudo isso estava lá nos anos 50 e foi perdendo força com os anos 70.”

1970 - 1980: O Declínio
A vitalidade do Centro começou a declinar com a chegada dos shoppings centers na Avenida Tancredo Neves e o deslocamento de muitos órgãos públicos para o Centro Administrativo da Bahia (CAB). O historiador e professor Pablo Iglesias Magalhães atribui um dos grandes impactos desse período ao deslocamento do eixo econômico, impulsionado pela inauguração do Shopping Iguatemi (atualmente Shopping da Bahia) no início dos anos 70. Para ele, o Centro entrou em um processo de “franca decadência” na década, embora esse declínio tenha raízes mais profundas.

"Esse processo de perda de prestígio do Centro de Salvador não é conjuntural, é estrutural, e remonta ao século XIX. Eu diria que o primeiro grande impacto foi a abertura dos portos e a formação de uma nova elite com muitos estrangeiros, o que influenciou a estética da cidade", analisa o historiador, destacando que o declínio é um fenômeno contínuo ao longo dos séculos.

Iglesias Magalhães explica que, com a substituição da cidade colonial, a arquitetura portuguesa com casas "coladas" umas nas outras perdeu seu significado para a nova elite, que passou a desejar grandes casas e palacetes. “Mudanças de estilo de vida e melhorias no sistema de transporte também começaram nessa época, com a introdução dos bondes.” Além disso, revela que a elite, desconfortável com a presença dos escravos, começou a abandonar a área.

O sociólogo e professor do Serviço Social da Indústria (Sesi), Leandro Passos, analisa que nas últimas décadas, a falta de manutenção das moradias, de infraestrutura e de segurança no Centro potencializou a desvalorização residencial. "O bairro do Comércio, a Avenida Sete... já passavam por uma série de questões relacionadas à mobilidade. Estacionamento de carros, por exemplo, é mais complicado. E quando as novas regiões foram surgindo na área do antigo Iguatemi, traziam uma série de facilidades: avenidas mais largas, empreendimentos imobiliários mais novos, maiores, com estrutura melhor. Então isso fez com que a população enxergasse essas características como sendo algo novo, e o novo seduz a população". A soma de todos esses acontecimentos resultaram na perda da força residencial, comercial, empresarial e social do Centro ao longo dos anos.

1990 - 2000: Decadência e Revitalização
Nos anos 80, uma das características marcantes foi a vida noturna nas boates da Rua Carlos Gomes. Ainda resiste no Dois de Julho o Bar Âncora do Marujo, voltado ao público LGBTQIAPN+, e considerado um palco da arte transformista pela Secretaria de Cultura e Turismo (Secult) de Salvador. O ‘Marujo’, fundado há 22 anos, já recebeu artistas renomados como o cantor Caetano Veloso.

Na mesma época, o Pelourinho, um dos principais pontos turísticos e históricos de Salvador, estava em decadência. “Completamente marginalizado e entregue. Nos anos 80, a prostituição e o tráfico de drogas eram muito evidentes no local”, lembra o historiador. A área faz parte do Centro Histórico, tombado em 1984 e incluído na Lista do Patrimônio Mundial pela Unesco no ano seguinte, segundo o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Nos anos 90, houve uma tentativa de revitalização do Pelourinho, mas para Magalhães, essa reestruturação foi “muito artificial” e não conseguiu reconectar os cidadãos com o espaço público.

"Essa revitalização restabeleceu a arquitetura, mas não restabeleceu o protagonismo do Centro urbano. Salvador é uma cidade que tem um centro urbano deficitário. Em todas as cidades, o centro cultural é o núcleo da vida urbana. Em Salvador, não", critica o historiador da UFOB.

Requalificação do Elevador Lacerda
Foto: Joilson César / BNews

Algumas iniciativas para reavivar o Centro ao longo das décadas, como a abertura de hotéis que não se firmaram e reformas de pontos históricos-culturais desativados, foram consideradas “efêmeras” pelo historiador. "Essas iniciativas foram estéticas e não conseguiram criar uma conexão duradoura com o espaço", afirma.

“Em momentos de festa, de exceção, essa conexão existe no Pelourinho, como durante o São João e nos circuitos Osmar (Campo Grande), Batatinha (Pelourinho) e no Santo Antônio Além do Carmo durante o Carnaval. Mas não é algo cotidiano. Hoje, há uma vida boêmia no Santo Antônio Além do Carmo, mas é um espaço frequentado por um grupo mais específico de jovens”, opina.

O historiador também observa que os espaços públicos da área foram sendo dominados. “O Centro perdeu esses espaços por uma série de razões, incluindo a violência mais recente." Iglesias Magalhães afirma que os governos das últimas décadas, “independente do espectro político”, falharam em planejar a cidade. Como resultado, houve uma diminuição da importância do Centro Histórico.

Alguns dos locais do Centro Histórico citados nesta matéria enfrentaram riscos de fechamento ou já fecharam as portas, como o Cineclube Glauber Rocha, que passou por dificuldades para continuar funcionando após o fim do patrocínio do banco Itaú. Outros pontos também estão fechados para visitação ao público. É o caso do Cine Excelsior, na Praça da Sé, construído em 1935 e desativado em 1994. Em 2022, o prefeito Bruno Reis (União) anunciou que, em processo de revitalização, o local será transformado em um espaço para eventos.

O mesmo acontece com o Palácio Rio Branco, localizado na Praça Tomé de Sousa, ao lado do Elevador Lacerda. Construído para ser sede da administração portuguesa, o local também já foi sede do Governo do Estado nos anos 70, e abrigou órgãos como a Secretaria de Cultura do Estado (Secult). Fechado, o 'Rio Branco' aguarda o início de obras para ser transformado em um empreendimento hoteleiro.

Palácio Rio Branco
Foto: Reprodução / Ascom / Visit Salvador da Bahia

O sociólogo e professor Leandro Passos ressalta que o processo de requalificação precisa ser amplo, com investimento nas moradias locais, na infraestrutura e na segurança pública nas áreas comerciais e residenciais. "Não adianta, também, acontecer um processo de gentrificação no qual essa requalificação esteja direcionada para imóveis de luxo, onde, geralmente, as pessoas que têm mais dinheiro não vão fazer o uso cotidiano desses espaços. O Estado tem que investir na requalificação física de imóveis que hoje estão, inclusive, abandonados. Em transformação de moradias, mas em moradias que sejam, de fato, populares", critica.

Rua Chile, no Centro Histórico de Salvador
Foto: Joilson César / BNews

Passos acredita que a Prefeitura e o governo do Estado tem investido muito em requalificação, mas afirma que as ações não surtirão efeito caso o Centro não seja ocupado. "É preciso investir em moradia popular. As pessoas precisam habitar essa região. É o movimento de pessoas no dia a dia, indo para a escola, voltando do trabalho, festas acontecendo em bares, pessoas entrando e saindo de farmácia, supermercado... que vai trazer essa vitalidade", explica.

Para o sociólogo, caso o Centro seja inserido no cotidiano da população, a movimentação gerada por moradores e visitantes irá fortalecer e diversificar o comércio local, além de trazer maior sensação de segurança. "A reconexão só vai acontecer caso a Prefeitura e o governo do Estado entenderem que o Centro não pode ter a única função de atividade comercial. Então, você vê bairros como Comércio e Avenida Sete totalmente desertos à noite. Isso se dá em função justamente dessa concepção de que ali é uma zona de comércio".

O historiador Pablo Iglesias Magalhães também aponta a violência como um dos principais fatores responsáveis pelo declínio do Centro. "Acho que o grande termômetro para ter uma noção de como o Centro está abandonado é quando você passa por lá à noite. Aos domingos, ou até mesmo durante a semana, depois do horário de expediente, é um deserto. É muito diferente de Madrid, onde você vai ao centro à noite e ele está fervilhando de gente, ou de Paris, ou de qualquer outra grande cidade. Em Salvador, é um deserto, e as pessoas estão com medo", lamenta o historiador, que afirma que a verdadeira questão a ser feita é como trazer a população de volta e reconectar os cidadãos ao Centro Urbano de Salvador. "Não é uma resposta fácil", conclui.

Classificação Indicativa: Livre

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