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Fabiano Pimentel avalia o impacto das últimas decisões do STF e do STJ para o Direito Penal

Arquivo pessoal / Fabiano Pimentel
Entrevista com Fabiano Pimentel – Advogado Criminalista e Professor de Direito Processual Penal da UFBA e UNEB  |   Bnews - Divulgação Arquivo pessoal / Fabiano Pimentel

Publicado em 12/05/2025, às 19h03   Fabiano Pimentel



O cenário jurídico brasileiro tem sido palco de transformações significativas, com recentes e impactantes decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que redefinem contornos importantes do Direito Penal e Processual Penal. Para nos ajudar a compreender essas mudanças e, crucialmente, suas implicações práticas, conversamos hoje com Fabiano Pimentel, que é advogado criminalista e Professor de Processo Penal da UFBA e da UNEB.

Entrevistador: Para iniciarmos, como o senhor avalia o atual momento do Direito Penal e Processual Penal no Brasil, à luz dessas recentes e numerosas decisões dos nossos tribunais superiores?

Fabiano Pimentel: Vivemos um período de efervescência e, por vezes, de grande tensão interpretativa no Direito Penal e Processual Penal. As decisões recentes do STF e do STJ refletem, por um lado, uma busca por adequação do sistema a garantias constitucionais e, por outro, respostas a demandas sociais por segurança e efetividade. O desafio constante é conciliar esses vetores, assegurando um processo penal justo e, ao mesmo tempo, capaz de oferecer respostas adequadas ao combate à criminalidade. As implicações práticas dessas decisões são vastas, afetando desde a atuação policial nas ruas até a rotina dos advogados, promotores e juízes nos fóruns criminais.

Entrevistador: Vamos então mergulhar nesses temas. Um dos primeiros que gostaria de abordar é a questão do perfilamento racial em abordagens policiais, tema sensível e recentemente analisado pelo STF.

Fabiano Pimentel: Excelente tema. No julgamento do Habeas Corpus 208.240/SP, finalizado em abril de 2024, o STF enfrentou diretamente a prática do perfilamento racial. O caso envolvia um homem negro abordado pela polícia, resultando na apreensão de uma pequena quantidade de cocaína e sua condenação por tráfico. O Supremo, ao analisar a licitude dessa abordagem, reafirmou a necessidade de indícios objetivos para a busca pessoal, independentemente de mandado judicial. A tese fixada foi clara: “A busca pessoal independente de mandado judicial deve estar fundada em elementos indiciários objetivos de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não sendo lícita a realização da medida com base na raça, sexo, orientação sexual, cor da pele ou aparência física”. Na prática, isso exige uma mudança de postura das forças policiais, coibindo abordagens discriminatórias e fortalecendo o controle judicial sobre a legalidade dessas ações. É um passo importante contra o racismo estrutural no sistema de justiça criminal.

Entrevistador: Outro tema de grande relevância institucional é o poder investigatório do Ministério Público, também revisitado pelo STF.

Fabiano Pimentel: Sim, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.943/DF, 3.309/DF e 3.318/MG, cujo julgamento foi finalizado em maio de 2024, o STF reafirmou a atribuição concorrente do Ministério Público para promover investigações de natureza penal. No entanto, estabeleceu condições importantes para esses procedimentos. Entre elas, a comunicação imediata ao juiz competente sobre a instauração e o encerramento do Procedimento Investigatório Criminal (PIC), a observância dos prazos dos inquéritos policiais (com necessidade de autorização judicial para prorrogações), e a aplicação subsidiária do artigo 18 do CPP, que trata do arquivamento. O STF também enfatizou o respeito às prerrogativas da advocacia e à reserva de jurisdição, garantindo à defesa amplo acesso aos elementos de prova já documentados, conforme a Súmula Vinculante 14. As implicações práticas são a necessidade de maior controle e transparência nos PICs, além de uma melhor coordenação com as polícias judiciárias para evitar duplicidade de investigações.

Entrevistador: A proteção da mulher vítima de violência também teve um novo capítulo com a decisão do STF na ADPF 1.107/DF. Não é verdade?

Fabiano Pimentel: Sem dúvida. A ADPF 1.107/DF, julgada em maio de 2024, foi um marco ao declarar inconstitucional a prática de qualquer conduta que desqualifique a vítima de violência durante a instrução e julgamento de crimes contra a dignidade sexual e outros crimes de violência contra a mulher. O STF proibiu qualquer menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima com o intuito de desacreditá-la. A tese fixada é: “É inconstitucional a prática de desqualificar a mulher vítima de violência durante a instrução e o julgamento de crimes contra a dignidade sexual e todos os crimes de violência contra a mulher, de maneira que se proíbe eventual menção, inquirição ou fundamentação sobre a vida sexual pregressa ou o modo de vida da vítima em audiências e decisões judiciais”. Isso impõe aos magistrados um dever ativo de coibir tais práticas, sob pena de responsabilização. Na prática, busca-se evitar a revitimização e garantir um julgamento mais justo e digno para as mulheres.

Entrevistador: Um dos julgamentos mais acompanhados foi o do Recurso Extraordinário 635.659/SP, sobre a tipicidade do porte de drogas para consumo pessoal. Como ficou este tema?

Fabiano Pimentel: Trata-se do Tema 506 da Repercussão Geral. O STF decidiu que o porte de até 40 gramas de maconha ou de seis plantas fêmeas, para consumo pessoal, é conduta atípica, ou seja, não é crime. Serão aplicadas medidas educativas em procedimento de natureza não penal, sem repercussões criminais. É crucial entender que isso não legaliza a substância, mas retira a natureza criminal da conduta do usuário nesses limites. A decisão também ressalta que quantidades menores podem ser consideradas tráfico se houver outras evidências (como forma de acondicionamento, apreensão de balança, etc.), e que a presunção de usuário é relativa. O Congresso Nacional foi instado a legislar sobre o tema. As implicações práticas são imensas, desde a atuação policial até a política criminal de drogas, com um potencial impacto na redução do encarceramento por pequenas quantidades.

Entrevistador: O Tribunal do Júri também esteve em pauta, especificamente quanto à execução imediata da pena e à absolvição por clemência.

Fabiano Pimentel: Exatamente. No Tema 1.068 da Repercussão Geral (RE 1.235.340/SC), julgado em setembro de 2024, o STF consolidou que “A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada”. Isso reforça a força das decisões do júri, permitindo o início do cumprimento da pena mesmo antes do trânsito em julgado de eventuais recursos. Já no Tema 1.087 (ARE 1.225.185/MG), o STF tratou da absolvição por clemência. Fixou-se que é cabível recurso de apelação da acusação (art. 593, III, ‘d’, do CPP) quando a decisão do júri, amparada em quesito genérico, for manifestamente contrária à prova dos autos. Contudo, o Tribunal de Apelação não determinará novo júri se constar em ata a apresentação de tese defensiva que conduza à clemência e esta for compatível com a Constituição, precedentes vinculantes e as circunstâncias fáticas. Na prática, busca-se um equilíbrio entre a soberania do júri e a necessidade de um controle mínimo de racionalidade das decisões.

Entrevistador: Falando sobre o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), como o STJ complementou a visão do STF sobre sua retroatividade?

Fabiano Pimentel: O STJ, no Tema Repetitivo 1.098, alinhou-se ao STF (HC 185.913/DF) ao reconhecer a natureza híbrida (processual e material) do ANPP e aplicar o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica. Assim, é cabível o ANPP em processos em andamento quando da entrada em vigor da Lei 13.964/19, mesmo sem confissão prévia, desde que o pedido seja feito antes do trânsito em julgado. O STJ também detalhou que, nos processos em andamento em 18/09/24 (data do julgamento do STF), se o ANPP não foi oferecido ou não houve justificativa para tal, o MP deverá se manifestar motivadamente. Para investigações ou ações iniciadas após essa data, a proposta ou a justificativa de não oferecimento deve ocorrer antes do recebimento da denúncia. Isso traz maior segurança jurídica e uniformidade na aplicação do instituto.

Entrevistador: E sobre o porte de arma branca, qual foi a definição do STF?

Fabiano Pimentel: No Tema 857 da Repercussão Geral (ARE 901.623/SP), o STF validou a aplicação do artigo 19 da Lei das Contravenções Penais ao porte de arma branca. A tese fixada foi: “O art. 19 da Lei de Contravenções Penais permanece válido e é aplicável ao porte de arma branca, cuja potencialidade lesiva deve ser aferida com base nas circunstâncias do caso concreto, tendo em conta, inclusive, o elemento subjetivo do agente”. Isso significa que portar uma faca, por exemplo, pode configurar contravenção penal, mas a análise não é automática; o juiz deve considerar a intenção do agente e a capacidade do objeto de causar dano no contexto específico. Na prática, mantém-se a relevância dessa contravenção, mas com uma exigência de análise casuística mais apurada.

Entrevistador: O STJ também trouxe importantes definições sobre a confissão extrajudicial.

Fabiano Pimentel: Sim, no AREsp 2.123.334/MG, a Terceira Seção do STJ estabeleceu contornos rigorosos para a admissibilidade da confissão extrajudicial. A tese principal é que ela só será admissível se feita formalmente, documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial, com garantias que não podem ser renunciadas. Mesmo que admissível, ela serve apenas como meio de obtenção de provas, não podendo, por si só, embasar uma condenação. A confissão judicial, por sua vez, só será considerada para condenação se encontrar sustento nas demais provas. Curiosamente, o STJ modulou os efeitos dessa decisão para fatos ocorridos a partir de 02/07/24, mas garantiu que qualquer tipo de confissão (judicial ou extrajudicial, retratada ou não) confere ao réu o direito à atenuante respectiva em caso de condenação. Isso reforça a proteção contra confissões obtidas sob coação ou informalidade.

Entrevistador: A Súmula 231 do STJ, que trata da impossibilidade de fixação da pena abaixo do mínimo legal, também foi reafirmada?

Fabiano Pimentel: Exatamente. Em agosto de 2024, a Terceira Seção do STJ reafirmou a validade da Súmula 231, que enuncia: “A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal”. Essa posição está alinhada com o entendimento do STF no Tema 158 da Repercussão Geral. Portanto, mesmo com a presença de atenuantes genéricas na segunda fase da dosimetria da pena, a pena-base não pode ser reduzida para aquém do mínimo previsto em lei para o crime. Na prática, isso limita a margem de redução da pena em certas situações, mantendo um piso estabelecido pelo legislador.

Entrevistador: Em relação às medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha, o STJ trouxe alguma novidade quanto à sua duração?

Fabiano Pimentel: Sim, no Tema Repetitivo 1.249, julgado em novembro de 2024, a Terceira Seção do STJ compreendeu que as medidas protetivas de urgência possuem natureza de tutela inibitória e não se vinculam à existência de inquérito ou ação penal. O ponto crucial é que elas devem viger enquanto perdurar o risco à mulher, não cabendo ao juiz fixar um prazo predeterminado de validade. Isso representa um reforço importante na proteção das vítimas, pois a medida só cessará quando o risco efetivamente desaparecer, e não por um decurso de prazo arbitrário.

Entrevistador: Por fim, professor, o STJ também consolidou entendimento sobre os limites da atuação judicial na prisão preventiva, correto?

Fabiano Pimentel: Correto. Com a aprovação da Súmula 676, o STJ estabeleceu que: “Em razão da Lei 13.964/19, não é mais possível ao juiz, de ofício, decretar ou converter prisão em flagrante em prisão preventiva”. Essa súmula reafirma o sistema acusatório introduzido pelo Pacote Anticrime, em especial o artigo 3º-A do CPP, separando as funções de acusar e julgar. Na prática, a decretação da prisão preventiva depende de requerimento do Ministério Público, do querelante ou de representação da autoridade policial, não podendo o juiz agir por iniciativa própria nesse sentido.

Entrevistador: Professor Fabiano Pimentel, esta foi uma análise extremamente rica e esclarecedora sobre um panorama complexo e em constante mutação. Agradecemos imensamente por compartilhar seu conhecimento e suas valiosas perspectivas sobre as implicações práticas dessas decisões para o Direito Penal e para a sociedade brasileira.

Fabiano Pimentel: Eu que agradeço a oportunidade. É fundamental que continuemos debatendo esses temas, buscando sempre um sistema de justiça criminal mais justo, eficiente e alinhado com os preceitos constitucionais. Muito obrigado.

Classificação Indicativa: Livre

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