Meio Ambiente

Decreto sobre mercado de carbono é ineficaz, dizem especialistas

Paulo M. Azevedo/BNews
O texto trata de um sistema que vem pautando a discussão climática no mundo todo, mas deixa lacunas sobre sua execução  |   Bnews - Divulgação Paulo M. Azevedo/BNews

Publicado em 07/06/2022, às 11h46   Folhapress


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Em maio, o governo federal publicou um decreto com as bases para a criação de um mercado de carbono no Brasil. Numa única página, o texto trata de um sistema que vem pautando a discussão climática no mundo todo, mas deixa lacunas sobre sua execução.

Na avaliação de especialistas ouvidos pela Folha, a medida indica que o assunto finalmente entrou na agenda do Executivo, e serve como um pontapé inicial para o país desenhar seu modelo de precificação de carbono. Contudo, diversos pontos permanecem em aberto, principalmente em relação aos prazos e à obrigação de setores reduzirem suas emissões.

Uma das poucas certezas é que o Brasil ainda não tem um mercado de carbono regulado –a exemplo do que acontece na Europa, China, Nova Zelândia e Cazaquistão.

O decreto apenas estabelece os procedimentos para a elaboração de planos setoriais de mitigação e institui o Sinare (Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa), que deve funcionar como uma central para registros de emissões, reduções, compensações e transações de créditos.

O texto também fixa a governança dos sistemas –dividida entre Ministério da Economia e Ministério do Meio Ambiente– e apresenta a definição de ativos como crédito de carbono e crédito de metano.

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Fora isso, especialistas dizem que a medida chega com atraso, não esclarece prazos para os cortes de emissões, rivaliza com um projeto de lei em debate no Congresso e promove insegurança jurídica. Veja alguns dos principais problemas do decreto.

1) Não institui um mercado de carbono regulado Para Gustavo Pinheiro, coordenador da área de economia de baixo carbono do ICS (Instituto Clima e Sociedade), o decreto é ineficaz. Segundo ele, trata-se de uma regulação voluntária, pois não gera nenhuma obrigação de redução de emissões.

Limitar a quantidade de gases de efeito estufa dentro da economia é um dos pontos centrais num mercado de carbono regulado. Nesse modelo –onhecido como "cap and trade"- o governo estabelece um teto para determinados setores e concede licenças para emissões.

É como se as empresas tivessem um "orçamento". Para poluir acima da cota, é preciso comprar mais permissões, que são vendidas por companhias que conseguiram cortar seus gases de efeito estufa. Trata-se de uma obrigação legal.

Segundo Guarany Osório, professor e pesquisador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da FGV/Eaesp (Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas), a medida anunciada pelo governo federal não versa sobre nada disso.

"[O decreto] entra no campo do mercado voluntário, porque quem gera crédito não será obrigado a gerar, e quem compra não é obrigado a comprar", afirma.

Para o professor, a resolução é positiva do ponto de vista do debate público, pois eleva o tema na agenda de discussão. "Me parece que o Executivo se posiciona de forma a indicar que esse tema é importante e que mudança do clima é uma realidade", diz. "Olhando com a régua bem baixa, pelo menos temos um decreto", acrescenta.

2) Não restringe emissões em setores econômicos Em carta publicada no dia 26 de maio, o CEBDS (Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável) criticou diversos pontos do texto. O grupo reúne algumas das maiores empresas do país, como Vale, Petrobras, JBS e Itaú, e defende a regulamentação de um mercado de carbono.

"O decreto tem muitas questões em aberto, inclusive prazos, e não deixa clara a participação mandatória dos setores econômicos que serão regulados pelo mercado ou se haverá consequências para o descumprimento das metas. São lacunas que implicam desafios e incertezas para a execução efetiva de um mercado regulado", diz a carta.

O ato do Executivo prevê a elaboração dos planos setoriais de mitigação, que terão metas gradativas de redução de emissões, considerando as especificidades de cada setor. As metas também precisarão observar a NDC brasileira (compromisso climático no âmbito do Acordo de Paris).

No entanto, não há detalhes sobre como funcionarão essas metas gradativas. De acordo com o texto, os setores poderão apresentar propostas para as curvas de redução de emissões num prazo de 180 dias –prorrogável por mais 180 dias.

Segundo Osório, o decreto não impõe obrigatoriedade para nenhum segmento econômico. Apenas estabelece medidas voluntárias, por enquanto.

Renata Amaral, advogada do escritório Trench Rossi Watanabe, também diz ter muitas dúvidas sobre como isso vai funcionar. Na avaliação dela, cada setor vai estabelecer sua curva de redução, parâmetro que provavelmente será usado pelo governo para definir as metas setoriais.

No entanto, a advogada não vê problema no fato de as metas serem voluntárias. "Os próprios setores vêm sentindo a necessidade de ter uma regulamentação mais forte para que possam colocar seus produtos no mercado. Eles vão precisar de metas de redução de emissões para vender, por exemplo, para a Europa", afirma.

Um dos desafios, porém, será enfrentar as diferenças entre as empresas. Segundo ela, é comum que players de um mesmo setor apresentem diferentes graus de maturidade na área ambiental.

É o que também pensa Ronaldo Seroa da Motta, professor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Para ele, dividir a meta acertada entre as companhias de um mesmo setor pode significar um processo de difícil convergência.

"Isso é um jogo de soma zero. A tendência é ser igual taxa de condomínio, ou seja, o valor que todo mundo pode pagar. É o que chamamos de limite inferior", diz.

3) Não esclarece prazos para as metas de redução Outro problema do decreto, na visão dos especialistas, é a falta de prazos. Osório, da FGV, diz que não há um cronograma claro -à exceção dos 360 dias para os setores enviarem sugestões sobre suas curvas de emissões.

A percepção é a mesma de Seroa da Motta. "O Brasil precisa de um mercado de carbono, só que o governo veio com um sistema que tem uma complexidade muito grande e que está pouco esclarecida no texto. Não coloca nenhuma obrigatoriedade, nenhum prazo e não detalha em nada o seu funcionamento. Quer dizer: outros decretos terão que ser emitidos para dar conta disso", afirma.

4) Rivaliza com PL sobre mercado de carbono A criação de um mercado regulado de carbono no modelo cap and trade –que é defendido pelos especialistas e por boa parte do setor privado– vem sendo discutida desde o ano passado no Congresso Nacional.

Inicialmente proposto pelo deputado Marcelo Ramos (PSD-AM), o projeto de lei 528/2021 está apensado a outro de teor semelhante. Havia, inclusive, a expectativa de que o PL fosse votado em novembro de 2021, durante a COP26, como forma de sinalizar um comprometimento do Brasil com o esforço climático global –o que não aconteceu.

Durante meses, a matéria ficou aguardando parecer da deputada relatora Carla Zambelli (PSL-SP), que só concluiu a apreciação no dia 19 de maio -mesmo dia da publicação do decreto.

Segundo Renata Amaral, do escritório Trench Rossi Watanabe, uma parte do empresariado considerava que a melhor opção para o governo seria fortalecer a tramitação do projeto no Congresso.

"O PL estabelece o que é mais comum em outros países em termos de um mercado de cap and trade, onde há efetivamente uma meta estabelecida pelo governo e, a partir disso, um comércio das permissões para determinados setores", diz.

A matéria no Legislativo também traz sanções para o caso de descumprimento dessas metas, algo que o decreto não prevê.

"Em outros países existe um elemento mais forte de o governo estabelecer uma meta obrigatória e a partir daí alavancar um mercado baseado nas permissões dadas aos setores regulados. Esse é um racional que, pelo menos por enquanto, não estamos seguindo", acrescenta Amaral.

Além de o projeto de lei abordar detalhes que não estão contemplados no decreto, ele também foi submetido a maior escrutínio. Seroa da Motta lembra que a matéria teve colaborações da CEBDS, CNI (Confederação Nacional da Indústria), Febraban e Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química), além de especialistas e organizações da sociedade civil.

"O PL tem uma estrutura de princípios e diretrizes, uma governança muito bem determinada, critérios de decisão claros... Isso tudo foi abandonado porque se diria, com razão, que é um projeto que precisa ficar no mínimo um ano sendo discutido no Congresso. Mas o governo queria pressa, porque agora ele é ambientalista", diz, em tom de ironia.

5) Promove insegurança jurídica Outra crítica feita pelos especialistas diz respeito à força jurídica da medida. "Muitos investidores sentem a insegurança de basear suas decisões em um decreto, que é algo que pode ser alterado a qualquer momento pelo Poder Executivo, ainda mais num momento de eventual transição de governos e discussão em torno da polarização", afirma a advogada do Trench Rossi Watanabe.

O raciocínio é acompanhado por Seroa da Motta. Na visão dele, trata-se de um formato que está menos sujeito a consultas públicas, acordos entre partidos e pressão da sociedade civil.

"Ninguém vai investir em projetos de redução, porque não se sabe se esse mercado, de uma hora para outra, pode mudar totalmente de regras. O decreto é um ato normativo que tem fragilidade jurídica, que gera incerteza", diz.

As críticas feitas pelo CEBDS são ainda mais duras. Segundo a organização, o marco regulatório não possui a previsibilidade e estabilidade necessárias para incentivar investimentos de longo prazo e pode, inclusive, inibir as ações que já estão sendo feitas pelo setor produtivo.

6) Chega com atraso Além das críticas ao formato, Guarany Osório, da FGV, diz que a medida está atrasada. Considerando que o Brasil já havia atualizado suas metas climáticas em 2020, um decreto de uma página para estabelecer planos setoriais chega com, pelo menos, dois anos de demora.

"Em teoria, espera-se que, ao entrar na nova vigência de um compromisso, tenha-se os instrumentos para implementar aquilo que foi prometido", diz.

A lentidão do governo em lidar com o tema prejudicou, inclusive, uma parceria com o Banco Mundial para implementar o mercado de carbono.

Conforme a Folha de S.Paulo revelou no ano passado, o governo federal tinha em mãos, desde o final de 2020, um estudo detalhando por que era desejável criar um mercado de carbono no país. No entanto, o projeto não avançou, e o país perdeu apoio estratégico do banco.

A fase seria a etapa posterior do PMR (parceria para preparação de mercado), programa do Banco Mundial que o Brasil começou a participar em 2016 e cujo objetivo era ajudar países a adotarem iniciativas para mitigar a crise do clima.

Seroa da Motta atuou como consultor do PMR e disse que o decreto publicado pelo governo passa uma borracha em tudo que o programa sugeriu.

"Para um governo que tinha uma plataforma não-ambientalista, negacionista, a medida é um grande avanço. Claro que esse avanço não aconteceu por uma conversão em massa do governo, foi porque houve uma pressão muito grande do setor produtivo e da cadeia global de negócios exigindo isso Brasil, além da necessidade de entrar na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico)", afirma.

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