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“Você tem fome de quê?”

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Bnews - Divulgação

Publicado em 20/02/2022, às 11h43 - Atualizado às 11h50   Penildon Silva Filho


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“Você tem fome de quê?” (“Comida”, do Titãs)

A proposta de retirar do currículo da educação fundamental pública municipal de Salvador os componentes de arte, educação física e inglês (primeiro e segundo anos do Ensino Fundamental I), pela gestão municipal de Educação, merece atenção, cuidado e o diálogo necessário para que não se retirem dos alunos da rede pública o Direito à Educação de forma ampla, integral, criativa e contemporânea ao mundo que vive uma revolução 4.0.

Para entendermos esse debate é interessante lembrar de uma das principais contribuições do patrono da Educação baiana, Anísio Teixeira, que na década de 1930 já discorria sobre a dualidade do sistema educacional brasileiro. Ao mesmo tempo em que Anísio subscrevia o "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova", de 1932, ao lado de Fernando de Azevedo, Roldão Lopes de Barros, Afrânio Peixoto, Lourenço Filho, Antônio F. Almeida Junior, Roquette Pinto, Delgado de Carvalho, Hermes Lima e Cecília Meireles, defendendo um plano geral de Educação de uma escola única, pública, laica, obrigatória e gratuita, esse intelectual baiano identificava que a Educação naquela época tinha dois ramos, um voltado aos filhos da classe trabalhadora e outro aos filhos da elite econômica.

Ele atacou essa dualidade da Educação, que reservava aos filhos da classe trabalhadora uma formação rebaixada, aligeirada, voltada a uma profissionalização precoce e com a desculpa que deveria “formar para o mercado de trabalho os que mais precisavam de um sustento”. No outro ramo formativo, os filhos da elite econômica tinham acesso à Ciências, às Artes, à cultura, a bibliotecas, experiências formativas mais amplas, e se preparavam não para entrar precocemente no “mercado”, mas para se tornarem aptos aos estudos superiores na Educação universitária e assim manter seus postos de comanda na sociedade. Se quisermos fazer um paralelo literário dessa percepção arguta de Anísio Teixeira, podemos nos lembrar de “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley.

Junto a 1984 (Nineteen Eighty-Four) de George Orwell e Fahrenheit 451 de Ray Bradbury, “Admirável Mundo Novo” é uma das três grandes distopias literárias do século XX. A preocupação desses autores girava em torno de como a Sociedade, com a desculpa de promover a felicidade geral e uma ordem social perfeita e sem conflitos, reservava às pessoas lugares sociais pré-estabelecidos, em castas, que não tinha mobilidade social e nas quais as pessoas já sabiam de seu destino ao nascerem. 1984 se voltava mais ao relato do autoritarismo de um mundo com rápida ascensão do fascismo e nazismo, fenômeno que vemos se repetir no início do século XXI; e Fahrenheit 451 indica a papel fundamental que a ignorância e o condicionamento têm em uma sociedade com um patamar muito rasteiro na Cultura, no simbólico e afetivo. Em Fahrenheit 451, profissionais do Estado perseguiam a destruição dos livros, os portadores da Cultura, considerados elementos subversivos, usando para isso o fogo, que a essa temperatura na escala Fahrenheit provocava a combustão do papel.

Em Admirável Mundo Novo vemos como a sociedade se divide em castas estanques, Alfa, Beta, Gama, “sem definição”, e a cada uma é reservado um conjunto de funções, todos são condicionados a obedecer e reproduzir a ordem social e todos já sabem seu destino, inclusive a hora de sua morte. Não é de surpreender o impacto que essas obras tiveram naquele tempo e hoje, e por isso se transformaram em filmes. “1984” foi lançado nesse mesmo ano, Fahrenheit 451 lançado na década de 1960 e depois em 2018 e Admirável Mundo Novo em 1998.

Esse paralelo literário entre a obra de Anísio e esses autores serve para exemplificar como a Arte é importante para a reflexão social, o amadurecimento pessoal e social, a contemplação e intervenção sobre o mundo. Esse conhecimento não é “dispensável” nem supérfluo, ele se articula à Ciência, à Cultura, à cultura corporal e às Linguagens para permitir uma visão e inserção ampla e integral na sociedade.

Assim como a Matemática é fundamental para a aquisição do raciocínio lógico e abstrato, à organização do pensamento, à percepção espacial do Universo e essas capacidades são importantes em todas as áreas do conhecimento, mesmo nas Ciências Humanas; a Arte, o ensino de língua estrangeira e a Educação Física são importantes para que os filhos da classe trabalhadora tenham uma Educação de qualidade, que prepare para os estudos superiores e os permita se inserir num mundo complexo, em mutação e no qual o trabalho repetitivo e automático deixa de existir, dando lugar ao trabalho criativo, intelectual, em permanente aprendizagem. As escolas de elite com certeza não vão abreviar a formação de seus alunos, na verdade estão a ampliá-la com ensino de robótica e de “cultura maker” e com vivências sociais, dentre outros.

A justificativa de melhor organizar o currículo com a retirada desses componentes, assim como a proposta do “Novo Ensino Médio” que tende a especializar a aprendizagem de adolescentes e jovens em apenas um percurso formativo setorial, procuram sua justificativa social com o discurso de que se está formando para o “mercado de trabalho”. Trata-se de um argumento falacioso e equivocado, por diversos motivos, dentre eles dois que apresentaremos.

Anísio Teixeira criou as Escolas Parque na Bahia, no Rio de Janeiro e em Brasília com uma parte voltada para a formação profissional, mas que não deixavam de ter uma biblioteca ampla, um teatro grande, espaço para práticas desportivas, uma formação nas Ciência e Humanidades e uma preocupação muito grande com a formação do ser político, pois na concepção anisiana o papel da Escola é formar o cidadão e não apenas o operário. Logo, não há sentido em estabelecer uma antinomia entre formação para a profissionalização e uma formação mais ampla e necessária ao mundo social.

Por outro lado, o mundo, devido justamente à revolução tecnológica e científica que são as grandes forças motrizes do desenvolvimento econômico atual, faz desaparecer uma série de ocupações e promove o surgimento de outras. As ocupações que desaparecem pela robotização das fábricas, pela automação industrial, pela inserção da inteligência artificial em todos os aspectos da vida cedem espaço para um trabalho cada vez mais exigente de uma formação ampla, integral e profunda em diferentes conhecimentos acadêmicos. Não precisamos mais tanto de operários, necessitamos de mais engenheiros; carecemos de mais de 500 mil profissionais em Tecnologia da Informação (TI) apenas no Brasil; as áreas que podem mais crescer são Cultura, Saúde, Educação e Turismo. O complexo hospitalar e farmacêutico pode responder por mais de 8% do PIB no Brasil. Vivemos a era da Economia da Cultura e Economia do Conhecimento. Essas áreas demandam uma formação generosa e uma continuidade nos estudos até a Universidade e depois por toda a vida.

Nem os trabalhos hoje mais precarizados, devido à forma como as tecnologias têm sido usadas pelos aplicativos de transporte de pessoas e entregas de encomendas, que carecem de qualquer proteção social e geram mais exclusão, estarão a salvo. Essas empresas já investem em sistemas automatizados para dispensar esses trabalhadores num prazo de 5 ou 10 anos. Até para refletir sobre a forma como a tecnologia deve ser apropriada pela Sociedade, se apenas para o lucro de poucos com a vulnerabilização de muitos ou para a libertação do ser humano dos trabalhos repetitivos e sua incorporação em trabalhos em que os indivíduos se realizem, torna-se imprescindível uma complexidade que uma formação mais rasteira não alcançará.

Por fim, pensar num mundo globalizado em que o ensino de línguas estrangeiras na escola pública torna-se dispensável não deixa de ser uma maneira de afirmar que muitos permanecerão ligados à trabalhos pouco qualificados e poucos terão a possibilidade de mover nesse mundo internacionalizado. A Educação deve formar pessoas que “não tem fome apenas de comida, mas de cultura e arte”, fome do belo, de se mover “para qualquer parte”, que levem em consideração “os desejos e necessidades” de cada um e da sociedade como um todo. Uma formação integral.

Doutor em Educação e Professor da UFBA

Classificação Indicativa: Livre

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