Política

Obra pública é usada para promover candidatura de filha de Cunha no RJ

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A cena se repetiu em ao menos três favelas em Costa Barros, na zona norte, e em outra na Vila Kennedy, na zona oeste, entre março e abril  |   Bnews - Divulgação Reprodução/ Redes sociais

Publicado em 07/05/2022, às 20h00   Ana Luiza Albuquerque/Folhapress


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Um grupo de homens vestidos com um uniforme azul trabalha na concretagem de uma rua em uma comunidade no Rio de Janeiro. Nas camisas, aparecem os dizeres "Equipe Dani Cunha", em referência à publicitária Danielle Cunha, filha do ex-presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha (PTB) e pré-candidata a deputada federal pela União Brasil.

A cena se repetiu em ao menos três favelas em Costa Barros, na zona norte, e em outra na Vila Kennedy, na zona oeste, entre março e abril. As obras eram públicas –tiveram o material custeado pelo estado.

Lideranças locais que atuaram nas pavimentações e que apoiam Danielle publicaram fotos e vídeos agradecendo à pré-candidata por levar melhorias para as comunidades. Boa parte das imagens foi apagada depois que o UOL publicou uma reportagem sobre elas.

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No último mês, a Folha questionou, via Lei de Acesso à Informação, se a Cehab (Companhia Estadual de Habitação do Rio de Janeiro) havia pavimentado em março uma das ruas que aparecem nas fotos. O órgão confirmou a realização da obra e informou o nome da construtora responsável pelo fornecimento do concreto.

O material foi entregue pela empresa Concreto Belford Roxo, que tem como sócia Roberta Monteiro, mulher de um dos aliados de Danielle, Clébson Guilherme Monteiro. Ele chegou a divulgar pré-candidatura a deputado estadual pelo Podemos, e publicou fotos com a filha de Cunha. Também no mês de março, anunciou uma parceria com ela.

"Fico feliz demais em ter nossas equipes em total sinergia, lutando por um Rio melhor e mais justo para todos", escreveu.

Em nota, o governo afirmou que, neste modelo de obra, o estado apenas repassa os materiais a prefeituras e instituições, e a contratação dos funcionários fica sob responsabilidade dos solicitantes. Já Danielle Cunha disse que não tem participação nas obras e afirma que não solicitou ou pagou para que os operários vestissem camisetas com o seu nome.

Segundo o governo, o pedido para pavimentação da rua João Paulo 2º, na favela Terra Nostra, partiu da Associação de Moradores de Costa Barros, que contratou operários da região para realizar a concretagem. "Qualquer ação política promovida durante as obras não é de conhecimento do governo do Rio", diz o texto.

Advogados especialistas em direito eleitoral consultados pela reportagem afirmam que o caso envolve potencial irregularidade que merece ser investigada.

Presidente da Comissão de Direito Político e Eleitoral do IASP (Instituto dos Advogados de São Paulo), o advogado Fernando Neisser avalia que pode ter ocorrido abuso de poder político e econômico. Segundo ele, a associação de moradores figura como um braço do estado ao receber material custeado com recurso público para realizar uma obra.

"Não pode transformar isso num ato político. E há um problema de abuso de poder econômico. A associação, como pessoa jurídica, não pode se envolver apoiando a pré-candidatura de uma pessoa."
Doutora em direito pela USP (Universidade de São Paulo), Ana Fuliaro afirma que não tem meios de avaliar, neste caso concreto, se será possível responsabilizar a associação por abuso. Mas diz que, potencialmente, pode haver irregularidade.

"A prática de abuso capaz de desequilibrar a eleição pode envolver várias pessoas, não só o agente político. Em tese, se uma associação está envolvida nisso para privilegiar um candidato, pode haver um abuso de poder, até porque a obra continua tendo a natureza pública", afirma.

Em nota, Danielle negou envolvimento no caso. "Importante deixar claro que, por ser pré-candidata à deputada federal, ainda não há propaganda oficial sobre a minha candidatura ou divulgação de ações", afirma o texto.

A publicitária chegou a publicar uma foto ao lado de Galô Fernandes, um dos homens que utilizaram o uniforme com o seu nome durante as pavimentações. "A comunidade Obrigado Meu Deus pediu e nós resolvemos!", escreveu na legenda da imagem.

Na nota enviada à Folha, Danielle disse, também, que encontrou poucas vezes Clébson Monteiro, ligado à construtora fornecedora do material. Ela afirmou que desconhece as atividades empresariais de sua família e informou que o empresário desistiu de disputar a eleição, por motivos que desconhece.

Empresário de Belford Roxo, cidade da Baixada Fluminense, Clébson já foi secretário no município; subsecretário de Integração Regional, da secretaria de Estado das Cidades; e presidente do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro.

A Concreto Belford Roxo, empresa de sua mulher, venceu uma licitação no fim de 2019 e fechou contrato de quase R$ 52 milhões com a Cehab. Nessa época, o órgão era vinculado à pasta de Cidades, na qual Clébson atuava como subsecretário.

Em março do ano passado, o diretor da Cehab chegou a abrir uma sindicância para investigar o contrato, "considerando o apontamento de eventuais inconsistências administrativas/legais".

Questionada via Lei de Acesso à Informação sobre o resultado da sindicância, a Cehab encaminhou apenas um parecer assinado pelo administrador Jorge de Carvalho Alves em outubro de 2020, antes da abertura da investigação, que indicou que o contrato e a licitação foram regulares.

Em nota, o governo afirmou que a contratação da empresa seguiu "todos os trâmites legais referentes ao processo licitatório". Clébson não respondeu a tentativas de contato da reportagem.

O Ministério Público do Rio de Janeiro também apura eventual fraude em licitação envolvendo contratos firmados entre a empresa e a Prefeitura de Belford Roxo. Segundo o órgão, a investigação está em fase de requisição de documentos junto ao município, para a "realização de perícia técnica de economicidade, verificação de desconformidades legais e análise de vínculos intersubjetivos".

Para além da articulação com lideranças locais, Danielle Cunha conseguiu um apoio de peso ""o do governador Cláudio Castro (PL). Ela tem acompanhado o aliado em alguns eventos do estado e cultos evangélicos. A filha de Cunha também tem utilizado a relação com Castro para prometer melhorias em determinadas regiões do estado.

Em evento de assinatura para início de obras na Cidade Alta, zona norte, o governador aparece ao lado de Danielle em uma gravação de vídeo, prometendo entregar um pedido da pré-candidata para a região.
"Estou eu e minha querida amiga Dani Cunha aqui na Cidade Alta. [Ela] acabou de me fazer uma solicitação para que a gente olhasse para essa região (...) Que a gente olhasse com carinho a questão de uma UPA. Imediatamente liguei para o secretário de Saúde e já vamos começar agora a buscar um terreno", disse Castro.

Prefeito de Belford Roxo e presidente estadual do União Brasil, Waguinho diz que o governador e a família Cunha começaram a se aproximar há cerca de um ano e "formalizaram uma amizade grande". "Todo governador candidato à reeleição procura se aproximar dos políticos do estado", afirma.

Segundo ele, a União Brasil, legenda que conta com vultosos recursos do fundo eleitoral e tempo de televisão e que está na aliança de Castro, também ajudou na interlocução da família com o governador, assim como ocorreu com outros políticos que ingressaram no partido.

Waguinho diz que o convite para que Danielle se candidatasse foi feito há cerca de um ano para Eduardo Cunha. Ela já havia concorrido a deputada federal em 2018, mas teve somente 13 mil votos e não se elegeu. Na época, o pai estava preso em Curitiba, condenado no contexto da operação Lava Jato.

O presidente do diretório estadual da União Brasil afirma que hoje o cenário é outro e que Cunha está participando ativamente da pré-campanha da filha. "Ele está fazendo aquilo que sempre fez pelas campanhas dele, ele sabe organizar. Nesta pré-candidatura vai se conversando com os aliados. Todo mundo tem que ir montando os seus grupos."

Embora esteja inelegível, Eduardo Cunha também pretende voltar a concorrer para deputado pelo PTB, em São Paulo.

Danielle também chegou a ser investigada pela Lava Jato por ter figurado como beneficiária de conta na Suíça em nome de sua madrasta, Cláudia Cruz. A suspeita da acusação era de que as contas no exterior tivessem sido abastecidas com recursos desviados de contratos da Petrobras. Ela, porém, não foi condenada.

A filha de Cunha é publicitária e conta com dois mestrados realizados fora do país. Antes da prisão do pai, costumava empreender em startups. Uma pessoa que conviveu com ela por anos afirma que, embora tenha prestado consultoria política, Danielle não manifestava desejo de concorrer. Mas, segundo esse interlocutor, ela defendia o pai "com unhas e dentes" -e faria tudo por ele.

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